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Luciano Pires -

Quando fala, você presta atenção nas palavras que usa? Já reparou na força da linguagem? Como uma simples vírgula pode mudar totalmente o significado de uma frase? Pois é, como dizia o filósofo Ludwig Wittgenstein, usamos as palavras como se jogássemos um jogo. Textos de Rubem Alves e Luis Fernando Veríssimo nos ajudarão na reflexão sobre o tema. Na trilha sonora aquela festa:  Juarez Maciel e o grupo Muda, Carlos Careqa, Luiz Tatit, Frejat, Quarteto à Deriva Copinha e os Paralamas do Sucesso com Lulu Santos. Apresentação de Luciano Pires.

[showhide title=”Ler o roteiro completo do programa” template=”rounded-box” changetitle=”Fechar o roteiro” closeonclick=true]

Pra começar, uma frase do filósofo Jean Paul Sartre:

Eu confundo coisas com seus nomes. Isso é crença.

O mestre Rubem Alves escreveu um reflexivo texto chamado SOBRE OS JOGOS LINGUÍSTICOS E A CAMISINHA, parte do qual você vai ouvir a seguir,

tendo ao fundo PALAVRAS SONS, de Juarez Maciel com ele eo Grupo Muda, que vem lá das Minas Gerais…

Ludwig Wittgenstein foi um dos filósofos mais interessantes do século que passou. Ele era fascinado pela linguagem. Observando a forma como usamos as palavras ele chegou à conclusão de que ao falar nós estamos jogando um jogo.  

Imagine, como exemplo, um jogo de cartas. Com as mesmas cartas muitos jogos diferentes podem ser jogados: buraco, pôquer, mau-mau, rouba-montinho, bridge, boa-noite-meu-senhor, truco, etc. As cartas são as mesmas. Mas em cada jogo e em cada situação do jogo as  cartas tem sentidos e usos completamente diferentes. Para que as cartas tenham um sentido preciso, necessário se faz que os jogadores estejam jogando o mesmo jogo. Se um joga as cartas com as regras do truco e outro joga com as regras do bridge o jogo, isso é, a comunicação, não acontece. Ao invés de um jogo o que temos é uma grande confusão.

Substitua “carta do baralho” pela palavra “palavra” e você entenderá  o que Wittgenstein tinha em mente ao falar de “jogos de linguagem”.
Então, não adianta consultar o dicionário. No dicionário as palavras estão mortas. Para se saber o sentido de uma palavra há de se saber o jogo que está sendo jogado.

Acho que foi isso que aconteceu na Torre de Babel: todos falavam as mesmas palavras mas ninguém entendia porque cada um jogava um jogo diferente.

Língua de babel  

Vamos costurar uma canção
A linha da palavra
Na agulha da criação

Vamos abusar do palavrão
Enfiar o dedo na ferida
Tirar das letras mortas
A carne viva

Letras bóiam no papel
Estrelas não caem do céu
Vamos chulear o fraseado
Orando na língua de babel

Porque você não abre o coração
A alinhava meu amor ao seu
Porque você não tece uma canção
Que agasalhe você e eu

Você está ouvindo, no podcast, Carlos Careqa com sua LÍNGUA DE BABEL. Nascido Carlos de Souza em Lauro Muller, Santa Catarina, Careqa é figura conhecida e respeitada no meio musical paulista, com um trabalho instigante e de alta qualidade. Mas que pouco toca no rádio… Aqui tem que tocar. Carlos Careqa, no Café Brasil.

Um dos primeiros livros que li foi As viagens de Gulliver, de  Jonathan Swift . Mas o meu livro com ilustrações e letras grandes só contava da viagem que Gulliver fez ao pais de Liliput, habitado por anõezinhos. Confesso que não me entusiasmei. O livro só me entusiasmou quando, já adulto, li sobre outros países por ele visitados, em especial o pais de Lagado, país das universidades. Tão parecidas eram as universidades de então com as universidades de agora… 

Chamou a minha atenção de forma especial as investigações e propostas que estavam sendo feitas pelos cientistas do Departamento de Linguística.

O uso da linguagem, todo mundo sabe, tem por objetivo tornar possível a comunicação entre os seres humanos. Falamos para ser entendidos e para entender.

Os lingüistas objetaram: “Sim, é verdade que usamos as palavras para sermos entendidos e entender. Mas a verdade é o oposto. Todos os desentendimentos acontecem em virtude do uso que fazemos  das palavras: eu falo uma coisa, meu interlocutor entende outra…

Então, o objetivo da comunicação exige a abolição das palavras, porque é nelas que se encontram as raízes do desentendimento. Para que haja comunicação sem desentendimentos é preciso que as palavras sejam substituídas pelas coisas que elas representam.

Gulliver relata então que os lingüistas adeptos dessa teoria caminhavam arrastando enormes sacos onde eles punham os objetos sobre os quais eles poderiam falar. Ao se encontrar – e especialmente nas reuniões do departamento – cada pessoa abria o seu saco, tirava de dentro dele os objetos relevantes e, em silêncio absoluto, mostrava um objeto ao seu interlocutor que, por sua vez, respondia mostrando outro…

Sinto que eu não deveria estar escrevendo esse artigo. Pois aprendi que as palavras só causam confusão. Eu deveria mesmo é estar mostrando objetos aos meus leitores. Isso não sendo possível, porque o espaço que o jornal me dá é pequeno para conter todos os objetos que conheço, resta-me fazer uso do obsoleto método de comunicação através das palavras.

Hai kai

Quando fiz de tudo poesia
Pra dizer o que eu sentia
Fui mostrar
Ela não me ouvia
E mesmo
Insistindo todo dia
Era inútil
Não me ouvia
Sofia! Sofia!
Não ouvia
E não havia
O que fizesse ela atender
Sempre dispersiva
Sempre muito ativa
Sofia é do tipo que não pára
Não espera e mal respira
Imagine se ela vai ouvir poesia!
Sofia, escuta essa, vai
É pequena
É um haicai

Por fim
Noite de lua cheia
Prometeu que me ouviria
Bem mais tarde às onze e meia
Nunca senti tanta alegria
Mas cheguei
Ela já dormia
Sofia! Sofia!
Não ouvia
E não havia
O que fizesse ela acordar
Sofia quando dorme
Sente um prazer enorme
Fui saindo triste abatido
Tipo tudo está perdido
Imagine agora a chance que me resta
Pra pegá-la acordada
Só encontrando numa festa

Então, liguei de novo pra Sofia
Confirmando o mesmo horário
Mas numa danceteria
A casa de tão cheia
Já fervia
E ela dançando
Nem me via
Sofia! Sofia!
Não ouvia
E não havia
O que fizesse ela parar
Sofia quando dança
Pode perder a esperança
Mas eu tinha que tentar:

Sofia
Estou aqui esperando
Pra mostrar pra você
Aquela poesia, aquela, lembra?
Que eu te lia, te lia, te lia,
E você não ouvia, não ouvia, não ouvia
Hoje é o dia
Vem ouvir vai
Ela é pequeninha
Parece um haicai
E foi feita especialmente
Sofia, eu estou falando com você
Pára um pouco
Vamos lá fora
Eu leio e vou embora
Ou então aqui mesmo
Te leio no ouvido
Se você não entender
A gente soletra, interpreta
Etc, etc, etc…
Nada, nada, nada, só pulava
Não ouvia uma palavra

Aí já alguma coisa me dizia
Que do jeito que ia indo
Ela nunca me ouviria
Essa era a verdade crua e fria
Que no meu peito doía
Sofria, sofria!
E foi sofrendo
Que eu cheguei
Nessa agonia de hoje em dia
Fico aqui pensando
Onde é que estou errando
Será
Que é o conceito de poesia
Ou é defeito da Sofia?
Ainda vou fazer novos haicais
Reduzindo um pouco mais
Todos muito especiais
Sofia vai gostar demais!

Rarara que delícia… Você ouviu, no podacast, Luiz Tatit com seu Haikai. Cara, como o Tatit é bom…ele sabe mesmo brincar com as palavras.

Rubem Alves falou do obsoleto método de comunicação através das palavras…que coisa fascinante.

Você já parou para refletir sobre como nossa comunicação através das palavras evolui?

As palavras, a linguagem, a gente sabe que evoluem com a introdução de novos termos, adaptação de outros e o surgimento de novos significados… Mas e o processo de comunicação em si? Ele evolui ou ainda é o mesmo da idade média? Olha, pra falar a verdade, eu acho que ele anda é piorando…

Eu só queria entender

Ah, será que ninguém percebeu que estamos girando no mesmo lugar?

Regredindo no tempo sem saber aonde nós vamos chegar?

Maltratando a Mãe-Natureza e esse imenso altar?

Impondo a miséria no mundo em nome de um tal “bem estar”?

Eu só queria entender o porquê

Ah, será que um dia uma estrela-guia virá pra mostrar o nosso papel:

Que a vida é uma linha fininha e o homem é o seu carretel?

Eu só queria entender o porquê

Eu só queria entender o porquê

Ah, será que o sentido da vida é viver o prazer de ostentar o poder?

E depois, ao final, quando tudo acabar, o que vamos fazer?

Eu espero que o homem perceba que assim está se matando

Acabando com o mundo, sem ter, nem porque, é a razão de um insano

Eu só queria entender o porquê de viver

Eu só queria entender o porquê pra viver

Eu só queria entender o porquê pra dizer:

Eu só queria entender o porquê

Olha aí o Frejat, com EU SÓ QUERIA ENTENDER, composição dele e de Flávio Oliveira, falando de como é difícil entender o homem..

Hummm…que delicia de chorinho…  que você vai ouvir agora no podcast: é Copinha com AS DELÍCIAS DE SOLON de Pixinguinha.

Quer ver como as nuances da linguagem causam diferenças brutais sem que percebamos?

Por exemplo, a vírgula…aquela coisinha, aquela minhoquinha sem importância. Ela pode mudar todo o sentido.

Vírgula pode ser uma pausa … ou não.

Não, espere.

Não espere ..

A vírgula pode sumir com seu dinheiro.

23,4.

2,34.

A vírgula pode criar heróis ..

Isso só, ele resolve.

Isso só ele resolve.

A vírgula pode ser uma solução.

Vamos perder, nada foi resolvido.

Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.

Não queremos saber.

Não, queremos saber.

A vírgula pode condenar ou salvar.

Não tenha clemência!

Não, tenha clemência!

Veja esta frase: SE O HOMEM SOUBESSE O VALOR QUE TEM A MULHER ANDARIA DE QUATRO À SUA PROCURA.

Se você for Mulher, Certamente colocou uma vírgula depois de MULHER … e deixou a frase assim:

SE O HOMEM SOUBESSE O VALOR QUE TEM A MULHER,  ANDARIA DE QUATRO À SUA PROCURA

Se você for Homem, Colocou uma vírgula depois de TEM …e a frase vai ficar assim:

SE O HOMEM SOUBESSE O VALOR QUE TEM,  A MULHER ANDARIA DE QUATRO À SUA PROCURA

Uma vírgula, pequenina, quase insignificante, muda tudo.

Então eu encontro Luís Fernando Veríssimo, com um texto famoso chamado O gigolô das palavras.

Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua.

Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão !”).

Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.

Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios.

Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo mas é claro, certo?

O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, mover… Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.)

A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro.

As múmias conversam entre si em Gramática pura.

Claro que eu não disse tudo para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas – isso eu disse – vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão indispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria.

Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família nem o que outros já fizeram com elas. Se bem que não tenho o mínimo escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.

Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa ! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção dos lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção.

A Gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda.

Viu só? Jogos lingüísticos, palavras torturadas, é assim mesmo que funciona. Palavras são armas que podem matar. Ou amar. Ou encantar. Ou decepcionar. Palavras tem poder. Pense nisso antes de usar as suas…

Assaltaram a gramática

Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia, na bagunça do dia-a-dia
Sequestraram a fonética
Violentaram a métrica

Meteram poesia onde devia e não devia
Lá vem o poeta com sua coroa de louro
Agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta do planeta
(Malagueta!)

E é assim ao som dos Paralamas do Sucesso com Lulu Santos com ASSALTARAM A GRAMÁTICA II que o Café Brasil de hoje que mais uma vez falou das palavras e da linguagem, vai embora.

Estiveram conosco Juarez Maciel e o Grupo Muda, Rubem Alves e Luis Fernando Veríssimo, Carlos Careqa, Luiz Tatit, Frejat, Copinha e os Paralamas do Sucesso com Lulu Santos!

Com Lalá Moreira na técnica, Ciça Camargo na produção e eu, Luciano Pires na direção e apresentação.

Quer mais? Vá trocar uma palavrinha com a gente lá no www.portalcafebrasil.com.br.

E pra terminar, que tal uma frase de um anônimo:

Há duas palavras que abrem muitas portas: puxe e empurre.

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