A Índia e suas contradições
Luiz Alberto Machado - Iscas Econômicas -A Índia e suas contradições
Glória incerta
“Embora suba depressa a escada das taxas de crescimento econômico, a Índia tem ficado para trás na escala de indicadores sociais de qualidade de vida, mesmo em comparação com países que vem ultrapassando no quesito economia.”
Jean Drèze e Amartya Sen
Há algumas décadas o bom desempenho econômico da Ásia tem chamado a atenção do mundo, a começar pelo Japão, que conseguiu, com incrível rapidez, superar as enormes dificuldades ocasionadas pela derrota na Segunda Guerra Mundial e se transformar numa das maiores potências econômicas do planeta na década de 1970.
Em seguida, houve grande repercussão do acelerado crescimento de algumas economias do sudeste asiático, que se tornaram conhecidos pelo nome de Tigres Asiáticos: Coreia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan.
Com o excepcional crescimento econômico posterior às reformas introduzidas por Deng Xiaoping em 1979, suficiente para transformá-la na segunda maior economia do mundo e maior parceira comercial do Brasil, é natural que as atenções tenham se voltado para a China, que se tornou “a bola da vez”.
Isso fez com que o desempenho econômico de outro grande país da região, tanto em extensão territorial como em população, tenha passado quase despercebido, a Índia.
Glória incerta, recém-lançado em português pela Companhia das Letras, preenche essa lacuna, oferecendo uma extraordinária visão do desempenho econômico da Índia, que tem se caracterizado, após a independência conquistada em 1947 – pelo contraste representado por elevadas taxas de crescimento econômico e a manutenção de flagrantes desigualdades sociais, que mantêm o país entre os que possuem maior contingente de pessoas vivendo em condições de pobreza.
Jean Dréze, ex-professor da London School of Economics and Political Sciences, que vive na Índia desde 1979, tornando-se cidadão do país em 2002, e Amartya Sen, nascido na atual Bangladesh e tendo se transferido com a família para a Índia depois da independência e ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998, são os autores do livro, o que, por si só, é uma garantia de qualidade apurada na pesquisa e na análise dos dados coletados.
Vários aspectos do livro merecem destaque. Diante da limitação de espaço natural num artigo-resenha desta natureza, limitar-me-ei a realçar três deles.
O primeiro diz respeito à evolução do crescimento econômico a partir do momento em que o país deixou de ser colônia britânica, num episódio conturbado descrito com riqueza de detalhes por Lapierre e Collins em Esta noite a liberdade e mostrado no filme Gandhi, com a magistral interpretação de Ben Kingsley no papel principal. A referida evolução apresentou ritmos diferentes (tabela 1), acelerando-se nas duas últimas décadas, quando foi em diversos anos o segundo maior do mundo, perdendo apenas para o da China.
TABELA 1
TAXAS DE CRESCIMENTO DO PIB DA ÍNDIA A PREÇOS CONSTANTES
(% POR ANO)
PIB | PIB per capita | |
Período colonial | ||
1900-1 a 1946-7 | 0,9 | 0,1 |
Período inicial pós-independência | ||
1950-1 a 1960-1 | 3,7 | 1,8 |
1960-1 a 1970-1 | 3,4 | 1,2 |
1970-1 a 1980-1 | 3,4 | 1,2 |
Décadas recentes | ||
1980-1 a 1990-1 | 5,2 | 3,0 |
1990-1 a 2000-1 | 5,9 | 4,0 |
2000-1 a 2010-1 | 7,6 | 6,0 |
Fontes: Sivasubramonian e Governo da Índia.
A respeito desse primeiro aspecto, afirmam Dréze e Sen:
A robustez do elevado crescimento na Índia está, sem dúvida, relacionada às reformas econômicas da década de 1990, que construíram uma base sólida para sua continuidade. Após oscilar entre 5% e 6%, a taxa de crescimento deslocou-se para um patamar superior a 7% e depois subiu mais, chegando a ultrapassar os 9% durante vários anos (entre 2005 e 2008).
O segundo aspecto que gostaria de enfatizar refere-se à distinção entre crescimento econômico e desenvolvimento, que os autores fazem questão de destacar. Embora tal distinção venha sendo ressaltada pelos teóricos principalmente a partir da segunda metade do século passado, na prática o que se observa é que muita gente continua, inadvertidamente, confundindo os dois processos, o que, em termos de condução da política econômica de qualquer país, pode se constituir num problema extremamente sério. De forma resumida, a diferença entre os dois processos pode ser apresentada como:
Crescimento econômico ⇒ aspecto quantitativo
Desenvolvimento ⇒ aspecto quantitativo + aspecto qualitativo
O desenvolvimento, assim, constitui-se num crescimento harmonioso e estrutural, ao passo que o crescimento não implica em equilíbrio das estruturas.
Essa preocupação em distinguir – sem deixar de reconhecer a relação – crescimento econômico e desenvolvimento não surpreende quem conhece a fantástica contribuição de Amartya Sen para este campo da teoria econômica. Afinal, ele foi um dos idealizadores do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que possibilita uma apuração mais abrangente do desenvolvimento em comparação aos indicadores antes utilizados e, mais tarde, apresentou outra visão inovadora com a publicação de Desenvolvimento como liberdade, quando mostra que a ampliação das liberdades é fator indispensável para o verdadeiro desenvolvimento.
O terceiro aspecto que quero mencionar está diretamente ligado aos contrastes que fazem parte da história da Índia e que justificam o subtítulo do livro: A Índia e suas contradições. Neste particular, há várias partes interessantes no livro, entre as quais duas me parecem de maior relevância.
A primeira é a solidez do regime democrático e de muitas de suas instituições e sua coexistência com uma rígida estratificação social baseada em castas, que tem em sua base um expressivo contingente de dalit, permanentemente expostos a violências e atrocidades, oprimidos tanto do ponto de vista econômico quanto social, sem receber muita atenção da mídia nem causar indignação na opinião pública.
No que diz respeito à democracia na Índia, Drèze e Sen realçam seus aspectos positivos, sem deixar, entretanto, de apontar também aspectos negativos e até alguns fracassos.
Sob a ótica positiva, afirmam:
A princípio, é difícil não encarar essa história política como uma grande conquista, já que a Índia foi o primeiro país não ocidental – e também o primeiro país pobre do mundo – a comprometer-se com uma forma de governo resolutamente democrática, com eleições multipartidárias sistemáticas, subordinação dos militares ao governo civil, independência do Poder Judiciário, proteção dos direitos das minorias e liberdade de expressão. Isso com certeza não é pouco.
Como contraponto, comentam:
Considerando que ter um sistema democrático é um fim em si mesmo, há muito a comemorar. Mas é como instrumento para o aprimoramento da sociedade – e, em particular, para a extinção de injustiças e desigualdades sociais – que as conquistas da democracia indiana podem ser seriamente contestadas. A continuidade – e, às vezes, até o aumento – de diferentes tipos de desigualdade na Índia, fornece provas bastante incriminatórias contra a visão da democracia indiana como uma experiência bem-sucedida em termos de suas consequências.
A segunda se refere à existência simultânea de elevadas taxas de crescimento econômico com alarmantes indicadores sociais, a ponto de a Índia ainda ter uma proporção maior de crianças desnutridas do que qualquer outro país do mundo, mesmo depois de trinta anos de crescimento acelerado, o que pôde ser visto em determinados trechos do filme Quem quer ser um milionário? que arrebatou o Oscar de melhor filme em 2009.
Ao longo de todo o livro aparecem comparações da Índia com outros países, com destaque para um subcapítulo que focaliza os BRICs em particular, e no capítulo final há um interessante relato da preocupação crescente decorrente da perda de vigor do crescimento econômico, que depois de atingir seu pico de 9% ao ano, registrado não tanto tempo atrás, recuou para cerca de 6% em 2013 e estimativa de pouco mais de 5% em 2014 (o que acabou se confirmando). Com as carências e contrastes que possui, e com tamanho contingente de população vivendo ainda em condições tão precárias, a Índia tem absoluta necessidade de voltar a elevar sua taxa de crescimento, ainda que, para muitos outros países a metade do crescimento indiano já fosse motivo de euforia e intensas comemorações.
Informações recentes dão conta de que a referida recuperação está efetivamente em curso. Isto, porém, será assunto para o próximo artigo.
Iscas para ir mais fundo no assunto
Referências e indicações bibliográficas
BUSH, Catherine. Gandhi. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
BUTLER, Francelia. Indira Gandhi. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
DRÈZE, Jean e SEN, Amartya. Glória incerta: a Índia e suas contradições. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes e Laila Coutinho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
FINKK, Lila e HAYES, John P. Nehru. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
LAPIERRE, Dominique e COLLINS, Larry. Esta noite a liberdade. Tradução de Ricardo Alberty e Maria Arminda Farias. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.
LAPIERRE, Dominique. A cidade da alegria. Tradução de Sieri Maria Campos. Rio de Janeiro: Record, 1987.
MACHADO, Luiz Alberto. A dança dos números. São Paulo: Instituto Liberal, Série Ideias Liberais, Ano 5, Nº 87, 1998.
MORO, Javier. Paixão Índia. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
_______________ O Sári Vermelho. Tradução de Sandra Maria Dolinsky. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão técnica de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Referências e indicações cinematográficas
Título: Gandhi
Direção: Richard Attenborough
Roteiro: John Briley e Alyque Padamsse
Música: Ravi Shankar
Elenco: Bem Kingsley, Candice Bergen, Edward Fox, John Gielgud, John Mills, Martin Sheen, Trevor Howard, Ian Charleson
Ano de produção: 1982
Duração: 191 minutos
Título: Quem quer ser um milionário?
Direção: Danny Boyle e Loveleen Tandan
Roteiro: Simon Beaufoy, Vikas Swarup
Música: A. R. Rahman
Elenco: Dev Patel, Freida Pinto, Anil Kapoor, Rubina Ali, Irrfan Khan, Madhur Mittal
Ano de produção: 2008
Duração: 120 minutos