
A Dialética do Confinamento
Gustavo Bertoche - É preciso lançar pontes. -O pensamento, como o próprio real, é dialético: a escolha de um caminho sempre revela mais sobre nós mesmos do que sobre a paisagem. A escuridão sempre ilumina o que está oculto na nossa alma. A confusão sempre expõe uma ordem implícita.
A crise do nosso tempo tem uma profundidade maior do que a sugerida pela tensão entre a perspectiva epidemiológica e a econômica. Quem procura compreendê-la e solucioná-la como uma mera questão de saúde pública ou de funcionamento das empresas ignora o que é essencial.
A crise que vivemos não começou em novembro de 2019. Ela já é antiga. Os caminhos que escolhemos seguir neste paroxismo da crise revelam a sua própria natureza.
Os caminhos que escolhemos para compreendê-la são os da ideologia médica e o da ideologia econômica. De um lado, o ser humano é reduzido à sua funcionalidade orgânica; de outro lado, é reduzido à sua dimensão de trabalho econômico. Mas esses dois caminhos ideológicos que estabelecem o campo da discussão possível em todos os lugares do mundo, na política e na academia, são simplesmente dois aspectos de uma mesma via: de um lado, o materialismo reducionlista biologizante; de outro, o materialismo reducionista econimicizante.
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Esses dois caminhos surgiram no século XIX, mas têm raízes mais antigas. Eles são o fruto da perda da percepção da pluralidade do real no início da Modernidade. Um Descartes já não mais concebe o mundo como um Cosmos, mas como um Universo: a realidade já não se ordena em níveis nos quais cada campo segue as suas leis próprias, sob uma estrutura complexa que abriga uma verdadeira pluralidade do ser. Para um Descartes, o real não é múltiplo, mas simplesmente duplo: existem somente dois níveis de existência, o das coisas extensas e o das coisas pensantes, cada um com o seu próprio sistema absoluto de leis. E para um Galileu já não há nem mesmo essa dualidade: o que existe é o Universo, com o seu nomos singular que a tudo submete, sem exceção. É justamente esse nomos singular que se expressa hoje na busca dos físicos teóricos pela “Teoria do Tudo”.
Uma “Teoria do Tudo”, uma fórmula capaz de descrever a totalidade do Universo, é o Santo Graal da ciência moderna. A sua posse transformaria o homem em um verdadeiro “demônio de Laplace”, e nada, nos limites da possibilidade do próprio Universo, de nós estaria oculto nem a nós interditado.
Essa busca da ciência moderna parte da premissa de que a realidade é um Universo, um todo absoluto, em que todas as partes são uniformes e possuem somente uma dimensão ontológica: a dimensão física. Em outras palavras: ela parte da premissa metafísica de que toda a realidade é física e uniforme.
O problema é que essa metafísica monista é frágil: não existe nenhuma maneira de demonstrar a verdade dessa premissa. Não se pode provar que o Universo seja um absoluto, que ele seja uniforme, que as suas leis rejam todas as suas partes em todos os tempos e todos os lugares. Sobretudo, não se pode sustentar, senão como ato de pura fé, que toda a realidade (que inclui a matéria e a energia, mas também as relações sociais, os pensamentos, os símbolos, a literatura, a interpretação de um poema, a música de Bach, o heroísmo, o amor, e – notavelmente – a própria crença dos cientistas no valor da ciência) se resuma a um conjunto de leis físicas. Afinal, as próprias leis da física não são compostas de matéria e energia, mas são algo bem diferente; por evidência lógica, elas são necessariamente anteriores aos próprios elementos materiais e energéticos, que somente podem surgir a partir das normas que regem a sua própria existência.
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A ideologia positivista sistematizada no século XIX por Auguste Comte, que se tornou o sacerdote supremo da religião cientificista que ele mesmo criou (e isso não é uma piada, ainda que seja), é o fruto mais vistoso da metafísica do monismo físico – que é a crença de que tudo é da ordem das leis físicas que regem o Universo, e que nada há fora desse Universo físico, absoluto e uniforme – e, ao mesmo tempo, a semente dos reducionismos ideológicos do século XX e XXI.
Esses reducionismos ideológicos, cuja expressão acadêmica mais óbvia é a cultura da hiperespecialização científica, impedem a abertura da visão do pesquisador: para o cientista, toda a realidade somente pode ser compreendida corretamente a partir do panorama visto do seu campo de pesquisa. Tudo o que há pode e deve ser descrito a partir de um núcleo reduzido de nomoi, não tomados como hipóteses e teorias limitadas, provisórias e sujeitas ao falseamento, mas como a própria estrutura absoluta e unitária do real.
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A crise que vivemos é de natureza metafísica. Com a modernidade, abandonamos o Cosmos e ingressamos no Universo. Deixamos de viver num mundo cheio de moradas, em que havia o lugar ontológico de cada ser, para habitar um mundo em que a ciência e a técnica determinam o lugar da existência aceitável. A metafísica do Cosmos se tornou a metafísica do Universo, e a metafísica do Universo assumiu a posição de ideologia de fundo do nosso tempo.
De um Cosmos em que se reconhecia a dignidade do lugar de todos os seres – sejam humanos, animais, vegetais, simbólicos, divinos, oníricos -, um Cosmos em que experimentávamos com humildade o reconhecimento da nossa própria ignorância a respeito do modo de existência de todos os outros seres, nos mudamos para um Universo em que o valor da existência de todos os objetos – não mais seres, mas objetos à nossa disposição, mas recursos, como os recursos minerais, os recursos vegetais, os recursos animais e, vejam!, os “recursos humanos” – é medido de acordo com a sua utilidade para o desenvolvimento tecnocientífico. Em nome da tecnociência, sob a justificativa da saúde humana, sob a justificativa do desenvolvimento econômico, processamos e destruímos todos os seres – que não mais são vistos como seres com valor em si e por si, mas que se nos apresentam como coisas, como objetos, como recursos disponíveis a partir do seu valor heteronomicamente determinado pela axiologia metafísica da Modernidade.
E, em nome da Humanidade, ignoramos – porque a nossa ideologia do materialismo absoluto nos cega para tudo o mais – que não somente cada ser tem o seu modo e o seu lugar de existência, mas nós mesmos, seres humanos, existimos em vários planos simultaneamente. Não somos somente corpos orgânicos; não somos somente força de trabalho econômico. As dimensões da nossa existência são tantas que seria impossível apresentar uma lista exaustiva: somos, além de organismos vivos e de trabalhadores econômicos, também seres oníricos, músicos, amantes, descobridores, metafísicos, heróicos, sexuais, poéticos, simbólicos, afetivos…
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Nesta crise, o reducionismo tecnocientífico se apresenta, qual Janus, sob duas faces, a médica e a econômica; mas ele é um único deus, ele é uma única ideologia. A questão de fato não é se vamos seguir os médicos ou os economistas. A questão é muito mais profunda.
Se não percebemos que essa crise não é simplesmente médica e econômica, mas metafísica; se não compreendermos que a origem dessa crise é a busca pelo crescimento infinito do poder tecnocientífico e econômico, e que nessa busca transformamos tudo – animais, minerais, símbolos, música, heroísmo, amor e nós mesmos – em recursos; se, em suma, continuarmos na estrada civilizacional que seguimos desde o início da Modernidade, encontraremos crises cada vez mais profundas, tão profundas quanto for a cisão entre a nossa ideologia – cuja natureza metafísica é monista e materialista – e a realidade plural que, queiramos ou não, exubera, cada vez mais violentamente, fora e dentro de nós.
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Talvez esta crise momentânea dentro de uma crise muito maior, uma crise que já tem quatro séculos, possa revelar a muitos que o problema não é o vírus, mas o modo como temos experimentado a realidade.
Oxalá ao menos alguns de nós nos libertemos do reducionismo, do monismo, do materialismo de fundo da ideologia da Modernidade para, enfim, voltarmos a habitar num Cosmos plural – um cosmos em que, sobretudo, cada modo de existência tenha o seu valor em si, e nada tenha o seu valor estabelecido por nós em função unicamente da sua utilidade para nós.
Ao aceitarmos e convivermos com a pluralidade cosmológica que há fora e dentro de nós mesmos, talvez possamos redescobrir o Outro, um Outro que ultrapassa o limite do humano e que nos tornará, por isso, mais humanos.
E, assim, quem sabe descubramos o caminho para a redução das necessidades da nossa civilização, o caminho do decrescimento; esse é o caminho da suavização das crises estruturais da alma e da sociedade humana, porque é o caminho da vida em harmonia com o Cosmos – do qual tecnociência, indústria e economia, afinal, também são mundos, mas não são a totalidade do Mundo