A visão pornográfica de mundo
Gustavo Bertoche - É preciso lançar pontes. -A minha família está passeando no Brasil. Eles estão aproveitando as férias escolares do nosso filho mais velho. Ontem uma menina de treze anos conversou com a Bruna, minha esposa. A menina lhe contou que não gosta de andar sozinha nas ruas: ela sente medo e nojo do modo como os homens a observam.
Eu acredito no relato dessa menina. Ela não exagera. Nos sites de notícias podemos ler, todos os dias, novos casos de violência contra crianças e adolescentes. Com efeito, quando tornei-me pai de menina comecei a prestar atenção ao modo como elas são olhadas por tantos homens – na rua, nos mercados, em todos os lugares.
Sim, há algo de terrivelmente perturbador na cultura brasileira: as meninas correm risco por serem meninas. Não se trata pura e simplesmente de machismo: há machismo em muitos lugares (no país onde moro existe machismo, e não é pouco), mas poucos países têm essa cultura da violência sexual generalizada. Onde moro, meninas adolescentes vão juntas ao estádio de futebol e voltam para casa sozinhas, quase de madrugada, sem que absolutamente ninguém as importune. No Brasil isso é simplesmente impensável, isso é simplesmente impossível. Fora do Brasil não é comum ver alguém observando lascivamente uma menina de treze anos. No Brasil isso é tristemente corriqueiro. A agressão sexual, exceção no mundo todo, em nosso país torna-se regra; é necessário tomar um extremo cuidado com as nossas filhas crianças e adolescentes, porque elas correm um real risco de sofrer uma violência cada vez que saem à rua sozinhas.
O que está acontecendo com o nosso país, amigos? Por que o Brasil está se tornando terra de maníacos, de estupradores, de pedófilos?
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Isso não se deve à água que se bebe no Brasil, nem se deve a uma hipotética disposição natural própria aos brasileiros. Nada disso.
A variável relevante nessa questão é a cultura. Há pelo menos quarenta anos os produtos culturais de massa em nosso país são hiper-sexualizados. Do “Xou da Xuxa” ao “Caldeirão do Hulk”, dos Mamonas Assassinas à Anita, todo alimento oferecido à nossa mente pela indústria cultural de massa tem o efeito de sobrecarregar sexualmente, no sentido mais vulgar e exagerado, a nossa imaginação, o nosso lazer, os nossos hábitos.
Amigos, não me compreendam mal: não sou um cruzado contra o sexo. Existe sexo em tudo na vida humana: nas relações de pessoais, nas escolhas profissionais, na literatura e na arte, nos nossos sonhos e aspirações. A força sexual – aí está a questão – está em tudo, pois é a força da vida, é a força que produz tudo o que há de mais poderoso no mundo humano. De fato, há mais sexo numa execução sinfônica dos Concertos de Brandenburgo de Bach do que num filme pornográfico: num caso, trata-se da potência vital em ato; no outro, há uma simulação vulgar – até o ponto da caricatura – da manifestação dessa potência.
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No Brasil a cultura de massa tem progressivamente perdido, há décadas, a dimensão da potência de vida, e tem reduzido as suas manifestações à caricatura da vida. No domínio da cultura de massa passamos do samba de Cartola à tatuagem no cu da Anita.
Amigos, o sexo está na música de Cartola: ela é uma expressão direta da sexualidade do brasileiro – e ao mesmo tempo uma expressão sutil, porque as coisas verdadeiras só se revelam diretamente de modo indireto. Mas o sexo está ausente da tatuagem na Anita: ali não há sexo de verdade – há somente uma expressão falsificada, caricatural e kitsch do sexo.
Por que tomamos a simulação como se fosse a coisa real? Ou: o que foi feito da nossa sensibilidade para que não percebamos como os produtos culturais que nos são oferecidos são pobres, caricaturais, ridículos? Ora, somos desde muito cedo dessensibilizados por meio do excesso da imagem da sexualidade fake. A falha na nossa sensibilidade sexual tem sido construída consistentemente pelos meios de comunicação: a tevê, a rádio, as revistas.
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Essa falha na sensibilidade não é localizada geográfica ou socialmente. Em todas as regiões do Brasil, em todas as classes sociais, estamos embrutecidos: somos inundados pela imagem falsificada do sexo e não mais percebemos que ele está naturalmente em tudo do mundo humano. Isto é: abandonamos o sexo real, a potência vital, e o reduzimos à sua dimensão falsa, à sua dimensão pornográfica.
Esta é a descrição exata do fenômeno da hiper-sexualização da cultura brasileira – que, de fato, é uma ausência da sexualidade, é uma substituição da sexualidade pela sua simulação. O brasileiro já não compreende que o sexo está presente de modo integral em toda forma de gozo estético, em toda forma de arte, em toda relação pessoal, em todo sonho e projeto de vida, e procura o sexo onde ele simplesmente não está, onde reside somente a sua cópia dessubstancializada. O brasileiro já não mais entende verdadeiramente o sexo: ele só é capaz de entender a pornografia.
Assim, o feminino deixa de ser visto em sua integralidade: a mulher, a adolescente, a criança já não mais é alguém como a mãe, como a avó, como a filha, mas um objeto de gozo pornográfico. Por essa razão, o brasileiro já não percebe que, ao olhar lascivamente o corpo feminino na rua, está olhando o corpo de sua mãe, de sua avó, de sua filha; para ele não é nada disso, porque aquele corpo material andando ali na calçada é outra coisa, aquele corpo é em tudo semelhante ao corpo da mulher na revista masculina, no filme adulto, nos vídeos do tik-tok – isto é: um corpo falsificado, irreal, um corpo-caricatura. O brasileiro não mais enxerga a mulher como outro alguém; a mulher é um objeto, é menos que um objeto, é uma imagem pornográfica, com o único propósito de servir à contemplação concupiscente – cujo desfrute carnal se dá não no plano da relação, mas no plano do onanismo, ainda que esse ato solitário tenha a aparência de sexo a dois, ou ainda que esse ato solitário se consume na perpetração de uma violência absoluta contra alguém. Na vida do indivíduo pornografizado a relação sexual se dá entre um Eu e um Isto e é, em última análise, não mais que um ato masturbatório.
Quarenta anos de consumo de alimento cultural podre produziram uma doença no plano da civilização: o brasileiro tornou-se um deficiente cognitivo e emocional. Hoje não mais podemos deixar a nossa filha de dez anos comprar pão sozinha na padaria: no caminho, ela certamente encontrará vários homens que a observarão como observam a foto de uma mulher nua na banca da esquina – homens com algum tipo de doença cognitiva e emocional que estarão dispostos a cometer o impensável se a nossa filha tiver um momento de desatenção, como se ela não fosse nada além daquela imagem na revista ou daquele videozinho de dança no tik-tok. Os pedófilos, os estupradores, são a exceção absoluta em qualquer país. Não no Brasil: a simples necessidade de as meninas se precaverem todo o tempo contra os maníacos revela que estamos construindo uma civilização doente.
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Todos nós somos culpados por esse estado de coisas. Todos nós que consideramos normal e aceitável que existam programas de televisão semi-pornográficos nas tardes de sábado ou domingo; todos nós que não vemos problema em músicas que objetificam radicalmente a mulher, mesmo quando é uma mulher quem canta (pense em sertanejo universitário, forró eletrônico, funk carioca); todos nós que julgamos inócuas do ponto de vista civilizacional a televisão e a música popular – todos nós somos culpados. Se o Brasil está se tornando um país sexualmente inseguro, se o perigo para as nossas meninas está presente agora em todos os lugares e a qualquer hora do dia, a culpa não é dos “políticos” (que, alías, nós mesmos escolhemos), nem é da “direita”, nem é da “esquerda”: a culpa não é dos outros, mas nossa; somos nós que continuamos a construir o edifício da nossa consciência com blocos de lixo processado.
Platão já ensinava há vinte e cinco séculos: a cultura determina a forma de uma civilização. O ambiente cultural no qual um povo vive determina o modo como ele pensa e age no mundo – eis uma verdade por si evidente. Por quarenta anos substituímos a cultura popular por merda, consumimos essa merda diariamente nas tevês, nas rádios, nas revistas, e assistimos tranqüila e passivamente à tomada da consciência do brasileiro pela perspectiva pornográfica falsificadora da vida.
E agora estamos surpresos e apavorados com os monstros que ajudamos, por ação e por omissão, a criar.