
Cloroquina. Ou: Da necessidade da Filosofia
Gustavo Bertoche - É preciso lançar pontes. -“Eu tomei cloroquina e fiquei curado”.
Quantas vezes não ouvimos ou lemos alguém dizendo isso?
Não duvido: muitos devem ter superado o Covid após o uso da cloroquina.
Isso significa que o uso da cloroquina pode ajudar quem pegou o vírus? Não, não significa.
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Amigos, é um fato: muitos brasileiros têm grande dificuldade na realização de operações lógicas. Creio que essa dificuldade – que explica em parte o QI médio de 87 dos brasileiros (1) – seja agravada pela ausência do estudo da Filosofia na escola.
Afinal, se houvéssemos estudado a lógica da argumentação, que é um conteúdo importante de qualquer boa apresentação escolar à Filosofia, teríamos aprendido que a atribuição da cura à cloroquina não passa de um produto da confusão do intelecto.
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Vamos ao desenho.
Não se sabe ao certo qual é a taxa de letalidade do Covid na população. Em países diferentes, em níveis sociais diferentes, em faixas etárias diferentes, os números variam bastante, e ao que parece ainda não descobrimos quais são exatamente os fatores de risco associados à doença: em que medida são genéticos – e quais os genes envolvidos? Em que medida são ambientais – e quais os elementos mais influentes? Em que medida são comportamentais – e quais os comportamentos mais perigosos? Em que medida são devidos à condição médica da pessoa – e quais as doenças preexistentes mais mortais quando associadas ao Covid?
A despeito da nossa ignorância quanto à dinâmica da letalidade do Covid, já se sabe ao certo que ela é menor que 1% entre os infectados (2). Note-se que isso não significa 1% da população, mas 1% dos que contraíram a doença. Provavelmente o número correto da mortalidade média fica entre 0,5% e 1% dos infectados. Por que não sabemos ao certo esse número? Porque é muito difícil precisar a quantidade real de pessoas que carregam ou carregaram o vírus. Afinal, entre 5% e 80% das pessoas que contraem o Covid não apresentam nenhum sintoma (3), e por essa razão óbvia não vão aos hospitais nem fazem nenhum teste.
Resumindo: é certo que a letalidade do Covid é menor que 1% entre os infectados. Isso significa que uma pessoa com Covid tem mais de 99% de chances de sobreviver.
Se essa pessoa, com teste positivo, tomar cloroquina, terá mais de 99% de chances de superar a doença.
Do mesmo modo, se essa pessoa decidir não tomar cloroquina, mas dançar o Ilariê da Xuxa três vezes por dia, também terá mais de 99% de chances de ficar boa.
No fim, a pessoa poderá dizer que ficou curada após tomar a cloroquina, ou após dançar o Ilariê três vezes por dia. E ela não estará errada.
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Essa pessoa terá ficado curada “após” tomar a cloroquina ou dançar o Ilariê. Mas não “porque” tomou o medicamento ou dançou a música da Xuxa.
Quem crê na existência de uma relação causal entre a cloroquina e a cura, ou entre a dança da Xuxa e a cura, cai na falácia da falsa causalidade: post hoc ergo propter hoc – após isso, portanto por causa disso.
A pessoa vê dois eventos sucessivos e, impropriamente, julga que o segundo foi causado pelo primeiro. Vê o infectado tomando cloroquina e ficando curado, e passa a acreditar que a cura foi causada pela cloroquina. O que seria o mesmo que pensar que a dança do Ilariê cura o Covid.
Isto é: a crença no poder curativo da cloroquina em relação ao Covid revela a insuficiência de certas faculdades intelectuais bastante importantes.
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A ausência do estudo da Filosofia faz muita falta aos brasileiros. Se estudássemos a lógica da argumentação, se conhecêssemos as armadilhas das falácias, jamais acreditaríamos na cura do Covid pela cloroquina, nem em fantasias equivalentes.
Para não sermos injustos, é preciso dizer que a Filosofia voltou ao currículo escolar há alguns poucos anos. Mas já existe – surpresa! – um movimento, em alguns grupos políticos brasileiros, que propõe a sua eliminação. Esse movimento chegou ao MEC no governo Temer, e as atuais bases curriculares nacionais permitem que a Filosofia seja abordada “transversalmente” em outras disciplinas no componente curricular chamado “ciências humanas”. Na prática, a Filosofia ruma novamente ao ostracismo (4).
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A propósito, inúmeros estudos realizados sobre a aplicação da cloroquina em pacientes com Covid chegaram à conclusão de que não somente ela não traz benefícios, como também pode ampliar os riscos dos infectados (5).
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Em tempo: dançar o Ilariê três vezes por dia não tem nenhum efeito colateral. Diferentemente da cloroquina, cujo consumo traz inúmeros riscos (6).
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REFERÊNCIAS:
(1) https://ourworldindata.org/grapher/change-in-average-fullscale-iq-by-country-1909-2013?country=~BRA
(2) https://www.nature.com/articles/d41586-020-01738-2
(3) https://www.cebm.net/covid-19/covid-19-what-proportion-are-asymptomatic/
(4) http://www.anpof.org/portal/index.php/en/artigos-em-destaque/1584-a-bncc-e-o-futuro-da-filosofia-no-ensino-medio-hipoteses
(5) https://sciencebasedmedicine.org/hydroxychloroquine-ebm-sbm/
(6) https://consultaremedios.com.br/difosfato-de-cloroquina/bula/reacoes-adversas