Amigos, a nossa alienação nunca está onde nós acreditamos que ela esteja: a nossa alienação está justamente onde temos certeza de que enxergamos a realidade.
Digo isso porque percebo, em boa parte do campo crítico do qual participo, a incorporação da agenda ultraliberal: desde a queda do Muro, os metacapitalistas têm sequestrado cada vez mais a agenda das esquerdas. É impressionante como estamos adotando, sem nenhuma crítica, a ideologia dos nossos adversários; estamos defendendo as teses ultraliberais como se fossem a expressão da própria realidade.
O liberalismo não é, em primeiro lugar, uma doutrina política nem econômica. Essas doutrinas são subordinadas à sua metafísica, à metafísica sobre a qual se constrói a ideologia liberal.
A metafísica liberal é a da primazia do indivíduo diante de toda a coletividade. A essência do liberalismo está da afirmação da soberania do indivído. O fundamento da ideologia liberal é o egoísmo, o egocentrismo, a egolatria. O projeto liberal é o de tornar os indivíduos progressivamente independentes de todas as relações de classe, de religião, de família: é o projeto de atomizar o indivíduo, de fazer dele um átomo solto no vazio do universo, sujeito somente às suas próprias regras – desde que não violem a propriedade dos outros indivíduos.
Na visão de mundo liberal, o indivíduo deve ser essencialmente livre para definir o que deseja ser para si mesmo e para os outros. Não é o seu meio – social, profissional, religioso, familiar – que o constitui: o indivíduo é autoconstituído. Este é o lema implícito em todo o liberalismo: é o “eu” quem decide, é o “eu” quem estabelece. O “eu” não tem nenhuma predeterminação: ele se autodetermina enquanto age. Não é outra a raiz daquela ideologia norte-americana do “self-made man”, o homem que constrói tudo o que tem com o seu esforço, acreditando nada dever a ninguém, e depender somente de si. E há muitas outras ideologias constituídas a partir dessa visão de mundo fundamentalmente ególatra.
A metafísica liberal não é particularmente recente: podemos encontrar os seus primórdios já em Diógenes de Sinope, no século IV a.C. Para Diógenes, a vida social não é autêntica, e por isso é preciso rir – e cuspir – na sociedade, abandonando as convenções e vivendo de modo autônomo. A metafísica liberal está antecipada também em ambos os pólos da discussão metafísica do século XVII entre os racionalistas e os empiristas. Tanto Descartes quanto Locke supunham, independentemente do meio pelo qual se pode conhecer as coisas, uma substância a priori (com algumas marcas, para um; toda vazia, para o outro) que era o centro de recepção de todas as experiências, tanto mentais quanto sensoriais. Ambos eram, em suma, idealistas – e Berkeley simplesmente chegou às últimas conseqüências: somente podemos falar do mundo a partir das impressões que temos na mente. Não é à toa que o principal problema metafísico, tanto na filosofia de Descartes quanto na de Locke, é justamente a relação entre o mundo mental e o mundo fora da mente, que somente pode ser indiretamente acessado por meio das impressões cognitivas, isto é, internas.
De fato, o indivíduo da sociedade pós-capitalista acredita, num reflexo distante das teses de Descartes e Locke, que tem experiências da realidade quando explora a sua própria subjetividade (como, aliás, explica o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han). O mergulho em si mesmo, as experiências privadas do próprio self, solitárias e subjetivas, são entendidas pelo indivíduo do nosso tempo como as verdadeiras – e únicas possíveis – experiências da realidade.
Ora, amigos, se o indivíduo pode se autodefinir e escolher livremente a sua identidade, ele se torna parte, em última instância, de uma classe de um só: ele é tanto mais autêntico quanto mais atomizado for. Conseqüentemente, ele se liberta de todos os impedimentos que decorrem da consciência de classe, de meio social, de religião, de família. O parâmetro de valor se subjetiviza: uma experiência tem tanto mais valor quanto maior for o seu poder de autodescoberta, de autorrealização, de autosatisfação.
Em outros termos: o indivíduo da sociedade pós-capitalista é guiado unicamente pelos seus próprios impulsos e desejos subjetivos.
E com isso o indivíduo absolutamente livre, o indivíduo sem amarras, se torna o consumidor puro. Ele não tem entraves sociais: somente deve obediência aos seus próprios desejos.
O consumo é erótico; o império do metacapitalismo ultraliberal é o império do Eros, mas também o império do Narciso, porque nele o Eros satisfaz a si mesmo diante do espelho. O indivíduo se possui e consigo dá vazão aos seus desejos eróticos à medida que se torna um puro consumidor, um conscumidor sem consciência: ele vive para consumir.
Vivemos no reino do ultraliberalismo, amigos. E muitos dos participantes do campo crítico, muitos dos que juram compor a vanguarda da esquerda, estão, de fato, na vanguarda do ultraliberalismo, na vanguarda do metacapitalismo.
Para concluir, eu me lembro de uma ocasião em que participava de uma reunião de pesquisa de pós-graduação num instituto na UERJ. Uma mestranda, investigadora da questão de gênero, relatava que havia recebido o financiamento da Fundação Ford para a sua pesquisa – ela estava surpresa porque não esperava que o seu projeto fosse aprovado. E concluía: “é incrível como o metacapitalismo está financiando pesquisas que vão contra o próprio sistema liberal-capitalista”.
Ela era ingênua. Na verdade, o que estava acontecendo era justamente o contrário.