
O crime de Marília
Fernando Lopes - Iscas Politicrônicas -No final dos anos 80, a pavorosa gemedeira caipiruda começou a invadir as rádios brasileiras. Muitos gostaram; afinal, nacionaleiros de plantão, cheios de arrogante ignorância, previam uma invasão cultural da “música americana”, como chamavam música estrangeira em geral – mesmo que fossem as ótimas músicas dos britânicos Queen, Elton John ou Rolling Stones, que dispensam comentários sobre o nível de sua arte. Pois os inflamados recalcitrantes, autoarrogados defensores dos ouvidos nacionais, exigiam que a música “americana” fosse banida por lei para, em sua visão medíocre, salvar o Brasil e nossa cultura do imperialismo. Deu no que deu. A imensa maioria do que é ouvido em canais de música, rádios e computadores é um verdadeiro e brasileiríssimo lixo. Os caipirudos se disfarçam e seguem travestidos de “universitário”. O tal do “funk”, que é tudo menos Funk de verdade (James Brown deve estar furioso, lá no Plano Superior), não passa de ruído. O leque é tão vasto quanto a baixeza do nível de som nacional, variando de ruídos sem sentido, acompanhados de letras podres, rebaixando as mulheres, a polícia e as instituições a nada, e ao mesmo tempo guindando a bandidagem, o tráfico de drogas e o sexo com crianças ao pico das virtudes. E reclamavam do Queen… Taspariu.
Tem gente muito, mas muito ruim mesmo no showbiz brasileiro… mas é a vida. Gosto é gosto. Tem gente que adora beterraba e bife de fígado – fazer o quê. Uns artistas pecam pelo repertório, outros pela voz ruim, outros pelo conjunto deplorável, incluindo uma postura indecente quanto a costumes e defesa de uso de drogas. Não é o caso de Marília Mendonça. Tem uma voz boa, canta relativamente bem e não defende nada absurdo com suas músicas bobas, que não servem nem pra passar o tempo em elevador. Mas tem seu público – e é direito dela, tanto quantos dos que ouvem seus “sucessos”, chamemos assim.
Pois resolveram linchar a moça nas redes. Não pelas suas letras fracas ou melodias cansativas, mas sim por ter, durante uma das lives pandêmicas tão em moda, tido a “audácia” de contar um caso verídico ocorrido em uma boate gay. Pra entender o caso: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/08/10/marilia-mendonca-e-acusada-de-transfobia-em-live-cantora-pede-desculpas-aprenderei-com-meus-erros.ghtml
Resumo da ópera tribal: Marília não ofendeu ninguém, não xingou, não disse nada de errado, não mencionou nomes, não foi grosseira, não discriminou, não discriminou. Mas “ousou” (segundo a interpretação da gente louca que patrulha os famosos na mídia), dar a entender que pode ser que talvez um amigo dela possa ter ido a uma boate gay e que teria talvez beijado um transexual achando ser uma bela moça com equipamento original, digamos assim. Tiveram de reinterpretar um possível comentário velado para cancelá-la, essa nova bobagem dos patrulheiros do mimimi. Tenha dó.
Os argumentos são os mais ridículos possíveis, mas, em geral, afirmam que a cantora “fez piada” com os gays. A que ponto chegamos, como diria o motorista de ônibus perdido – se é que não vão criar fuzilamento por piadas com essa honesta e respeitada classe trabalhadora, ou mesmo criar o crime de “motoristofobia”, já que o antecedem a gordofobia, apropriação cultural e tantas outras bobagens de quem não entende uma simples realidade: O fato de alguém se sentir ofendido não significa que ele tenha razão.
Ninguém quer entender essa premissa básica. Querem odiar – e sempre cobertos de uma “razão” sem fundamento. Vítima, juiz e carrasco num única pessoa – ou pessôo, vai saber. Daí basta chamar o inimigo criado às pressas de nazista, racista, fascista, homofóbico, e tantas outras qualificações que esses novos Senhores da Razão usam a torto e direito. Não gostaram de um mero comentário? Carimbam na testa da vítima (real, não a inventada por eles) um – ou vários – desses epítetos e ainda saem pela internet da vida “exigindo” apoio à sua decisão de tribunal de bar, ameaçando com a mesma pena que não a seguir de imediato. Um hospício, mas com método digno de quem sabe muito bem o que faz, com pouco de demente e muito de aproveitador.
Marília Mendonça deveria ter se rebelado contra esses tribunais da má vontade, dirigidos por gente que não sabe perder e culpa os outros pelos seus próprios fracassos, adorando confundir igualdade de oportunidade com resultados obtidos. A oportunidade é para todos, mas sucesso é só para alguns; lei da vida. Porém, mesmo diante do sucesso de seu trabalho (discutível, mas um trabalho), Marília cedeu às patrulhas e pediu desculpas pelo que não fez, mas que poderia ter deixado a imaginar. Pelamor. Ex-lacradora, foi apanhada na armadilha do lacre.
Não dá mais pra suportar essa mania louca de lacrar em rede social, essa insanidade de se fingir de vítima pra poder ser carrasco, de revolucionário de sofá, de fingir de morto pra saciar-se com os aconchegos do coveiro. Cresçam.