Pandemia, ciência e democracia
Gustavo Bertoche - É preciso lançar pontes. -Num momento de crise, como a situação de pandemia em que vivemos, muitos desejam uma orientação a respeito de como devem agir, mas não sabem em que confiar.
Nesse contexto, leio aqui e ali pessoas inteligentes nos exortando a “seguir a ciência”. Que elas me desculpem, mas eu não sigo o que eu não sei o que é.
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Foi o Rubem Alves quem, no livro Filosofia da Ciência, escreveu que “o cientista virou um mito” e que “todo mito é perigoso”. De fato: a idéia de um cientista puro e universal, ou melhor: de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico – que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado – é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. “Confiar na ciência” corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos políticos.
É também mitológica a idéia de uma ciência unitária e uniforme. O tipo de existência da ciência não é como o de um partido político, em que se pode apontar inequivocamente qual é a sua posição oficial, qual é o seu presidente, quais são as suas teses orientadoras. A ciência existe como um conceito abstrato relativamente indeterminado – como são os conceitos de “Ocidente”, de “religião”, de “povo” – que se ramifica em muitas regiões simbólicas.
Como mostraram Bachelard, Kuhn, Feyerabend e muitos outros depois deles, a idéia de uma posição unitária da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. “A ciência” não afirma nada; “a ciência” não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são “os cientistas”. E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da ciência. Em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia… – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente. Quando tomamos a voz de um cientista como a voz da própria ciência, simplesmente adentramos o domínio poético do pensamento metonímico: tomamos uma voz concreta e particular como se fosse a posição de todos os cientistas de todas as regiões científicas. Nada nos impede de usar figuras de linguagem – desde que não as tomemos como expressões diretas do real, e desde que elas não nos sirvam de orientadoras das ações políticas concretas.
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Há uma grande disparidade entre as posições dos cientistas porque, como Popper mostrou, a ciência é incapaz de provar qualquer coisa: uma teoria científica não é uma descrição exata da realidade, mas uma hipótese a ser testada, aperfeiçoada e, eventualmente, abandonada. O trabalho do cientista não é o de “confirmar” uma teoria, mas o de tentar derrubá-la. Em outras palavras: a ciência não nos oferece “a verdade”, mas descrições mais ou menos provisórias que funcionam até certo ponto e que nos permitem operar, de algum modo, no mundo.
De fato, é na incompletude, na mobilidade, no criticismo da atividade científica que reside o seu valor. Se um cientista se torna um dogmático, então já abandonou o campo da ciência e adentrou o campo da ideologia.
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Neste momento devo interromper brevemente a argumentação: é certo que alguém está a ponto de me acusar de de “terraplanista”. É preciso dizer que nunca houve terraplanismo nem entre os cientistas, nem entre os filósofos, nem entre os teólogos; como mostra Jeffrey Butron Russel em Inventing the Flat Earth, a concepção de que os medievais acreditavam na “Terra plana” não passou de uma “fake news” divulgada por intelectuais cientificistas no século XIX com a finalidade de ridicularizar a religião. Ninguém pode levar a idéia da “Terra plana” a sério, nem achar que o outro é, sinceramente, um terraplanista. Tenho certeza: todo terraplanista só pode ser um gozador, um trolador, exatamente como aqueles que seguem a religião “maradonista” na Argentina.
No fundo, o que alguém quer dizer quando acusa o outro de terraplanista é que o outro é um opositor da pesquisa científica. Não é o meu caso. Não somente não me oponho ao trabalho dos cientistas, como o defendo e o julgo fundamental para a sociedade e para a humanidade. Sustento inclusive que todos os governos deveriam investir boa parte do seu orçamento na pesquisa e no ensino científico, sem nenhuma obrigação do pesquisador para com resultados imediatos em função da economia ou do bem-estar público.
Essa minha posição não é contraditória com a constatação de que as ciências são perspassadas por interesses econômicos e políticos; ora, esses interesses são inevitáveis, e devem nos prevenir contra a confiança cega nas conclusões dos cientistas, mas não podem nos levar a defender o cerceamento da sua liberdade de investigação.
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Eu não posso “seguir o que diz a ciência” porque “o que diz a ciência” simplesmente não existe. Existem cientistas e suas equipes, campos científicos, escolas de pensamento, laboratórios e experimentos; existem debates, controvérsias, fraudes; existem descobertas acidentais e existem construções teórico-experimentais complexas e meticulosas. Mas não existe “a resposta científica”, simples e unívoca, para um problema real do mundo humano.
Por essa razão, quando me recomendam que, diante da pandemia, é preciso “seguir o que diz a ciência”, eu fico sem saber o que me está sendo recomendado. De fato, suspeito que esse pensamento prosopopéico signifique, afinal, “seguir uma determinada ideologia” – e que o imperativo: “siga a ciência!” não seja senão mais um slogan, vazio como todos são.
“Seguir a ciência”? Obrigado, mas não estou pronto para acompanhar as suas preferências ideológicas e os seus mitos: eu permaneço seguindo a minha razão – que, a propósito, deve acidentalmente concordar com o que algum cientista, em algum lugar no mundo, está sustentando neste exato momento.
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Ademais, a sociedade humana é complexa demais para que as decisões políticas que dizem respeito a todos sejam tomadas por doutores em biologia, em medicina ou em qualquer ciência. O conhecimento muito profundo sobre um vírus não confere a ninguém profundidade no conhecimento sobre as dificuldades da vida social, econômica, política e espiritual do ser humano. A opinião de um cientista sobre essas dificuldades, quando não dizem respeito à sua especialidade, não vale mais do que a opinião de qualquer outro cidadão.
Por isso, permaneço defendendo que as decisões que afetam a toda a comunidade sejam tomadas pela própria comunidade, após um debate amplo que inclua a palavra de muitos cientistas – um debate em que a razão comunicativa nos aproxime do compromisso possível para que, nos responsabilizando pelo nosso futuro, encontremos o caminho que nos parece o mais adequado.
Entendo que vivemos em um tempo em que os indivíduos, perdidos e inseguros, desejam que um líder lhes diga o que fazer e que puna exemplarmente os que o questionem. Mas o desejo da tutela é a marca da menoridade.