
Pax Aeterna
Gustavo Bertoche - É preciso lançar pontes. -Maquiavel é, com alguma freqüência, considerado o primeiro cientista político moderno: nas suas análises, ele teria sido um dos primeiros a rejeitar tanto uma concepção metafísica da natureza humana quanto uma filosofia sistemática da História. O fiorentino teria procurado descobrir na própria narrativa da História, a partir de um raciocínio indutivo, as leis da ação política.
Decerto o método da indução histórica nos é útil: ele nos permite um certo grau de previsão acerca da direção das idéias que impulsionam a marcha humana nos tempos. O que aconteceu, o que acontece, indica o que possivelmente acontecerá no futuro.
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Adorno e Horkheimer mostraram, na “Dialética do Esclarecimento”, que os desenvolvimentos tecno-científicos criados para nos libertar da miséria e da opressão acabaram por criar um novo tipo de submissão: passamos a tomar a necessidade e a inevitabilidade do avanço da ciência e da técnica como artigo de fé, e deles nos tornamos não somente dependentes, mas também, de certo modo, servos. Ordenamos toda a nossa vida – o trabalho, o lazer, o descanso, a família – em função da manutenção da ordem da técnica.
Assim, o que nos liberta nos aprisiona; o que nos salva nos escraviza. Servidão recebe um novo nome: liberdade; adequação agora é sinônimo de sucesso; consumo é felicidade.
Nos já estamos no “Admirável Mundo Novo” descrito por Aldous Huxley. Já vivemos num novo mundo em que a recusa crítica à razão totalitária e em que a defesa da autonomia racional do sujeito são considerados sinais da desrazão.
Afinal, todos nós aprendemos – por meio de uma indústria cultural que retroalimenta os valores da sociedade tecno-científica – a desejar a tutela, a desejar a submissão, a desincumbência da responsabilidade sobre a nossa própria vida e sobre a nossa própria morte.
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Por isso, não é difícil supor que, diante das prováveis novas pandemias e emergências mundiais, se aprofundem algumas tendências sociopolíticas que têm se manifestado.
Em nome da saúde e da segurança pública, o governo da Coréia do Sul passou a monitorar todos os cidadãos: por meio de milhões de câmeras de vídeo nas ruas e do monitoramento dos aparelhos celulares, o Estado sabe onde cada um está, para onde anda, com quem se encontra. O governo da China vai além: conhece também o que cada um faz nas redes sociais e o que compartilha pelo seu e-mail; sabe mesmo a sua condição de saúde, pois tem acesso aos smartwatches usados por parte dos jovens.
No Ocidente já existem defensores da proposta de dar a órgãos de segurança o acesso aos celulares de todos os cidadãos. A justificativa é que, com esse controle, o Estado poderia evitar, em época de pandemia, as aglomerações que amplificam a disseminação do vírus.
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Uma sociedade na qual a autoridade política pudesse conhecer toda a vida do indivíduo – os seus passos, a saúde do seu corpo, as idéias talvez inaceitáveis ou criminosas que dissemina na internet – decerto seria bastante segura. Nela, os sistemas de saúde pública poderiam ser gerenciados com a maior eficiência possível; os crimes violentos seriam virtualmente banidos, pois a sua autoria seria facilmente descoberta; seria inexistente a expressão pública de racismo e de homofobia.
Sem dúvida, ficaríamos tentados a trocar a inviolabilidade da nossa privacidade pela promessa de uma vida com menos doenças, menos crimes e menos intolerância. O problema da distopia retratada por George Orwell em “1984” não é a permanente vigilância da população, mas a falta do contraponto hedonístico. Huxley percebera, antes mesmo de Orwell, que uma sociedade do controle precisa de uma dimensão de escape: é o pano de fundo de “Admirável Mundo Novo”. O totalitarismo imaginado por Huxley é baseado não na violência e no medo, mas no prazer e na idéia de liberdade: afiuma sociedade do controle na qual todos tivessem acesso a redes sociais, drogas lícitas, esportes de massa, música popular e liberdade sexual seria perfeitamente tolerável, e mesmo desejável, por muitos.
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Hobbes talvez tivesse alguma razão. O homem comum está bastante disposto a abrir mão da sua privacidade, da sua liberdade de ir e vir, da sua liberdade de pensamento em benefício da segurança. Esse homem pensará: “não sou terrorista, homicida nem racista; minha vida é trabalho e lazer; nada tenho a temer diante do controle governamental da minha existência”. Quem poderia reprová-lo?
É possível mesmo antever que os que se opuserem a esse controle institucional da vida serão, na mídia e nas redes sociais, considerados obscurantistas, teóricos da conspiração e até criminosos. Quando chegar o momento, cada homicídio consumado será atribuído à ignorância dos que se opõem à monitoração de tudo e de todos pelo Estado. Os críticos de um projeto assim serão tratados como esquisitões, como loucos, como terraplanistas, e enfim relegados à irrelevância por meio do processo de silenciamento social que Noelle-Newmann chamou de “espiral do silêncio”.
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Ao chegarmos ao epítome do controle estatal do cidadão, em certo sentido a nossa existência será mais livre: uma sociedade sem crime e sem ódio evidentemente é uma sociedade em que a vida pode ser vivida mais plenamente.
Mas, como tudo no mundo humano, essa liberdade será dialética: quando ganhamos uma coisa, perdemos outra. O que teremos perdido quando isso tudo acontecer? O que teremos perdido quando a totalidade da nossa vida for institucionalizada?
Talvez percamos uma faculdade sutil e invisível, uma faculdade que, em última instância, não se pode medir senão indiretamente (como no experimento de Stanley Milgram): talvez percamos a nossa autonomia.
O homem que perde a responsabilidade sobre si mesmo, sobre a sua vida, sobre a vida dos outros, e alegremente cede essa responsabilidade a outrem, infantiliza-se. Esse homem acreditará no que lhe for dito. Sob as palavras de ordem escolhidas com cuidado, fará o que lhe for ordenado, oprimirá quem lhe for indicado. E na hora em que for escolhido para o sacrifício, marchará em direção à sua própria aniquilação com o coração emocionado, transbordando de amor patriótico.
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A história do nosso tempo indutivamente nos revela uma tendência: o fortalecimento das instituições de controle da vida do homem. A feliz submissão a uma tirania tecno-científica de natureza benigna, que garantirá a saúde e a segurança de todos nós, parece mais ou menos inevitável. E quando isso acontecer, o homem finalmente terá, em vida, a sua pax aeterna.