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Ciça Camargo -

Luciano          Muito bem, mais um LíderCast. O programa de hoje começa com um jabá, mas é um jabá do coração porque é um jabá para o meu grande patrocinador, o programa de hoje só acontece por causa da DKT. Foi numa reunião com a DKT que o pessoal me comentou o seguinte: tem uma pessoa que você tem que conhecer e tem que conversar, você tem que levá-la no LíderCast, eu falei mas quem é? Eles me deram assim um overview sobre a pessoa e eu falei nem fala muito mais não, porque parte importante desse programa aqui é eu não conhecer profundamente a pessoa e fazer com que a minha curiosidade leve a conversa para lados que a gente não sabe onde vai e deu nisso. Então fizemos uma coisa interessante, ela chegou em São Paulo, ela veio de Porto Alegre para São Paulo e eu fui para Porto Alegre, cheguei agora do aeroporto, nos encontramos aqui, então vamos conversar um pouquinho, esse programa aqui tem três pergunta fundamentais que são as que dão a base do programa e não são difíceis de responder, preciso saber seu nome, sua idade, se puder dizer e o que é que você faz?

Bia                 Bom, o meu nome é Beatriz Pacheco, eu tenho 68 anos, tenho orgulho da minha idade porque só envelhece quem vive muito e o que eu faço agora? Agora sou uma velhinha folgada, dona de mim. Eu fui advogada, trabalhei, sou aposentada do Tribunal do Trabalho, eu era assessora do presidente, agora nada mais, faço o que meu coração pede.

Luciano          Que bom, como é que você é conhecida? É Bia?

Bia                 Bia.

Luciano          Bia, todo mundo fala, então vou chamar de Bia.

Bia                 E não precisa me chamar de senhora, porque eu sou velhinha mas a vida já me envelheceu, não dá força.

Luciano          Tá certo e você também, por favor, me chame de você, eu sou muito mais novo que você, só tenho 60.

Bia                 Ah uma criança.

Luciano          Nós estamos pertinho, vai dar um papo muito bom aqui. Você é gaúcha?

Bia                 Sou gaúcha, nascida em Porto Alegre.

Luciano          Portinho…

Bia                 Portinho…

Luciano          Boa, hoje eu estive com a turma toda lá, olha, eu trabalhei durante 26 anos numa multinacional cuja origem aqui no Brasil foi lá, é a Dana Albarus lá de Porto Alegre e comecei a ir para Porto Alegre em 1982, então e conheci o Rio Grande do Sul pujante, com um cenário cultural maravilhoso, empresas acontecendo, era um negócio maravilhoso ao longo dos anos 80 começo dos 90 e de repente aquilo degringola de um jeito tal e não recupera mais…

Bia                 Como o nosso país, não é?

Luciano          …  não recupera mais. Eu estava com eles hoje, a gente conversando eu falei que tristeza, porque eu não vou mais fazer evento lá porque acabaram os eventos, o pessoal não chama mais a gente, o que está acontecendo?

Bia                 Não tem mais…

Luciano          O pessoal não chama mais a gente, o que está acontecendo aqui?

Bia                 Eu fico chocada porque o nosso hino gaúcho diz “sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra”, a minha expectativa é que a gente consiga ter uma façanha agora de  retomar a vontade de viver, de lutar e de seguir adiante em tudo porque está muito triste o nosso estado.

Luciano          Sabe que eu tenho… outro dia eu estava batendo papo com uns amigos, eu tenho muitos amigos gaúchos aqui em São Paulo e a molecada vem para cá e fazem acontecer, onde você vai tem um gaúcho pintando  e bordando aqui, então o cara é diretor disso, diretor daquilo, você vai ver é gaúcho, eles tem uma capacidade muito grande de fazer acontecer, de tomar conta dos processos… a gente estava conversando e eu virei para os caras e falei o seguinte: o Rio Grande está daquele jeito por tua culpa, sabe por que? Porque você fugiu de lá, entendeu, vocês que são os caras que estão fazendo acontecer aqui, eram os caras que tinham que estar lá botando aquilo abaixo, não deixando os estúpidos tomar conta daquilo, mas vocês foram embora…

Bia                 Mas não tem espaço…

Luciano          … vocês foram embora…

Bia                 Não tem espaço…

Luciano          … vocês vieram para cá e deixaram aquilo lá, então voltem para lá e retomem aquilo.

Bia                 É, nisso então os meus filhos estão lá na mesma área de jornalismo, publicidade, eles estão tocando a vida.

Luciano          Você estudou o quê?

Bia                 Direito.

Luciano          Direito, a sua família é gaúcha também, todo mundo de lá?

Bia                 É, é gaúcha sim, eu sou Pacheco, meu pai foi presidente do Tribunal do Trabalho, parentes, eu não entrei pela porta dos fundos, eu fiz concurso, o pai tirou licença prêmio para ficar fora na época que eu fiz concurso, porque a gente vem de uma família em que o filho tem que ser valorizado também e se eu entrasse pela porta dos fundos eu não ia me valorizar, então é daquelas coisas assim, eu vim de uma família rígida gaúcha, com todos os seus machismos, tanto que quando eu me formei o elogio do meu pai foi, tinha três irmãos homens, eu era a única mulher, “o mais macho dos meus filhos é tu”. Bom, a brincadeira é que até hoje eu acho que não que eu seja o mais macho dos filhos, mas a fibra como mulher também, porque o que eu vivenciei é uma coisa difícil demais e para ti ter ideia, eu fui criada em colégio de freira, estudei 14 anos em colégio de freira, em 64, em plena revolução, eu fui para um colégio público onde a kombi do DOPS estava no recreio lá, onde muita gente foi presa dentro da escola e ali eu comecei a conhecer um pouquinho o que era a vida. Mas foi muito pouquinho, porque eu casei com o homem que o meu pai escolheu para mim e eu achava que estava certo, sou do século passado sim.

Luciano          Olha, alô, alô você que está ouvindo aí, está preocupado…

Bia                 O que que essa mulher tem a ver? …

Luciano          … com as discussões de hoje em dia, com…

Bia                 … nossa, eu me divorciei entre namoro, noivado e casamento 30 anos, e eu já com quatro filhos, ele não comandou o coração e se apaixonou por uma menina mais moça e foi embora, ali eu comecei…

Luciano          Quando foi isso?

Bia                 … ah…

Luciano          Que ano era isso?

Bia                 … 71

Luciano          71, ok.

Bia                 … não, desculpe, 91. Mas daquelas coisas assim, eu tive que aprender a ser gente ali, eu não sabia nem o dia que se pagava a conta da luz, eu tentei suicídio, eu falo isso porque me tiraram o chão, eu não esperava, eu tinha casado para sempre, era a minha geração. Hoje eu já acho graça das besteiras que eu fiz, porque eu tenho um amor à vida incrível, eu casei, eu tive um outro companheiro em 92 e com quem eu vivi um ano e pouco e ele faleceu, aí eu comecei a crescer profissionalmente porque ele já era aposentado do Banco do Brasil e ele tomou conta dos meus filhos para que eu pudesse tocar a minha vida adiante profissionalmente. Com ele eu aprendi a lidar com dinheiro, coisa que eu não sabia, então uma série de coisas eu fui aprendendo com esse homem e ele tinha deixado da família também porque ele tinha cirrose hepática, porque ele tinha sido alcoolista, esse homem faleceu sem que nem os médicos tivessem se dado conta, naquela época o HIV já estava na nossa história, ele se infectou numa transfusão de sangue  porque naquela época…

Luciano          Não se sabia direito o que era.

Bia                 … não se sabia nada e se falava em grupos de risco, então a morte dele foi tranquilamente como cirrose hepática e eu me lembro que eu falei para o meu filho mais velho assim, disse olha filho, eu entendi o recado do velho lá de cima, é para encerrar minha vida… tocar a minha vida adiante, cuidar de vocês e fim e o meu filho riu, “tá” velha, toca a vida adiante. O velha, nessa época eu tinha quarenta e poucos anos e eu me sentia a velha. Hoje com 68 eu me sinto ótima. A gente vai aprendendo a ser feliz.

Luciano          Deixa eu voltar lá atrás assim, papai escolheu o homem com quem eu ia casar, seu pai lhe apresentou, este é o…

Bia                 Não, não, ele era nosso vizinho, ele estava sempre lá em casa, eu tinha namorado e um dia o pai chegou para mim e disse assim: não quero mais esse namoro, namorava ele há dois anos, o outro rapaz e eu não discutia, é aquela coisa assim o que eu entendia que pai e mãe sabiam de tudo e eu não discuti, doeu, foi tudo bem e um dia…

Luciano          Você tinha o quê? 18 anos?

Bia                 … não, não, menos…

Luciano          15, 16…

Bia                 … é, por aí, e aí um dia nós estávamos almoçando e o meu vizinho entra lá em casa, com os cabelos compridos, ele tinha parado de estudar, estava trabalhando já ele e o pai olhou para ele e disse se tu quer alguma coisa com a minha filha vai cortar esse cabelo e volta a estudar e o assunto ficou por ali. No dia seguinte ele entrou lá em casa com o cabelo curto e me entregou a matrícula que ele tinha voltado a estudar, então oficialmente eu estava namorando. Viu que lindo?

Luciano          É inacreditável.

Bia                 Quanto amor, né?

Luciano          Sim, inacreditável.

Bia                 Então, é até ridículo a gente falar isso porque mesmo naquela época já havia uma certa evolução nos anos 60, eu não podia sair sozinha com ele, eu só fui andar de mão dada com ele depois de noiva e sai sozinha para entregar os convites de casamento. Não existia o divórcio naquela época então meu casamento era para sempre, na minha cabeça, então eu não questionava, eu não fui infeliz, eu não questionava nada, porque se meu pai tinha dito que era bom, é porque era bom. Eu ficava triste às vezes com algumas coisas, mas isso aí não… eu sempre fui muito otimista, eu tocava a vida ao máximo para a frente, sempre falei muito, dei muita risada e às vezes ele ficava bravo, meu marido ficava bravo comigo dizia assim, tu parece uma mulher muito assanhada e eu ficava chocada com aquilo, eu só era amiga das pessoas, eu me dava bem com todo mundo e eu tinha que ser mais recatada, segundo ele eu tinha que ser  do lar, recatada e aquela coisa…

Luciano          Mais ainda.

Bia                 … mas enfim, quando ele me disse que ele tinha outra mulher, mas que ele não ia me deixar, ele ia continuar morando em casa, os meus pais já tinham morrido, foi um momento em que a Bia que eu sou hoje começou a vim para fora, disse assim não, eu me lembro até que o meu pensamento, não vou ficar lavando cueca de homem, e bobagem… e eu fiz ele ir embora. Então foi uma coisa muito louca, me senti jogada no lixo, aquela coisa assim, ele era uma pessoa muito quieta, e ele mesmo brincava que lá em casa era um diálogo perfeito, eu perguntava e eu respondia, quer dizer, era uma relação que não tinha brigas, atritos.

Luciano          Você falou que ele não controlou o coração e se apaixonou por outra.

Bia                 O coração não se controla.

Luciano          Isso foi culpa dele ou sua?

Bia                 Não tem culpa nisso.

Luciano          O que que é? Eu digo, a culpa não, vamos lá, a responsabilidade por isso acontecer  foi sua ou foi dele?

Bia                 Acho que de nós dois, de nós dois porque eu na minha imaturidade nem notava que ele estava se distanciando e eu sempre fui muito infantil, apesar da idade e de ter responsabilidade em termos de trabalho e tudo, mas meu lado infantil, a minha criança está viva até hoje.

Luciano          Se você pudesse voltar àquela época, antes de tudo acontecer, que é que você mudaria?

Bia                 Eu não teria casado.

Luciano          Você nem teria casado, mas digamos, casou e está lá e num determinado momento você vai olhar para aquilo e hoje você faria alguma coisa diferente, ou deixaria a coisa correr como correu porque…

Bia                 Eu não consigo imaginar diferente, entende, porque eu estava satisfeita, a gente tinha um patrimônio bom, nós estávamos crescendo profissionalmente os dois, nossos filhos estavam bem, estavam bem encaminhados, quer dizer, para mim estava perfeito, mas eu só fui descobrir o quanto eu não era feliz depois…

Luciano          Quando você abriu uma outra janela… quando você abriu uma janela nova.

Bia                 … ah querido, bom, eu casei então a segunda vez, ali não teve realmente uma situação de amor, ali teve… o meu segundo relacionamento era uma pessoa mais velha que eu, ele fez uma proposta… quase um negócio comigo, ele propôs… eu estou doente, eu preciso de alguém que cuide de mim, eu estou me aposentando do Banco do Brasil, tu tá precisando de uma força com teus filhos, tu tá precisando aprender uma série de coisas, vamos combinar uma coisa? Vamos viver junto? E tu promete para mim que quando eu adoecer tu cuida de mim, eu me lembro que eu fui para a casa com essa ideia e falei com meu filho mais velho de novo e ele é um gozador, ele: tenta véia e eu tentei, eu nunca imaginei que, nem ele, que o HIV ia entrar na nossa história dessa forma, mas eu tenho uma gratidão imensa por esse homem, porque ele me deu o impulso profissional que o primeiro não deu e ele me disse: tu tem capacidade, vai. E eu fui e cresci profissionalmente dentro do Tribunal, então de cada um deles eu tive uma herança boa, do primeiro os meus filhos maravilhosos, do segundo essa coisa de perceber que eu também posso, mesmo sendo mulher e…

Luciano          Olha como é chocante essa tua frasezinha final, mesmo sendo mulher.

Bia                 … sim querido, mas é isso, mesmo sendo mulher, porque era essa a diferença, tanto que eu te falei do elogio do meu pai, quer dizer, uma mulher com garra era uma coisa que não…

Luciano          Não era comum.

Bia                 … não, bem recentemente o pai dos meus filhos disse que naquela época eu disputava com ele o espaço, eu não sentia isso, porque minha mãe trabalhava, minha mãe era dentista, quer dizer, eu tinha dentro de casa já uma mulher diferente da época e eu não via isso, eu queria crescer profissionalmente também para nós crescermos juntos, mas o sentimento dele era esse, mais por ele ser uma pessoa muito quieta, ele nunca falou, então eu só fui saber isso agora, bem recentemente.

Luciano          Ele está vivo ainda?

Bia                 Está, está casado, está bem, está bem feliz.

Luciano          Com aquela moça?

Bia                 Não, com outra. Mas aí quando faleceu o segundo eu disse bom…

Luciano          Vou cuidar da vida.

Bia                 … é, vou cuidar de vocês, vou tocar a minha vida e cinco anos depois de ter falecido o meu segundo marido, eu chamo de marido,  mas não é, o meu companheiro, eu reencontrei uma pessoa que eu tinha conhecido quando eu era noiva, aos 18 anos, e ele tinha 14, naquela  época ele era um gordo feio, um guri de 14 anos gordão e era amigo do meu cunhado, mas só que quando nós nos reencontramos, ele era um gordo lindo, barbudão, lindo para mim e daquelas coisas assim: nós nos encantamos um com o outro sem sabermos quem a gente era e de repente na primeira conversa, mas olha só, é tu? É incrível e em, acho que um pouco mais de dez dias, nós estávamos morando juntos…

Luciano          Só vou te dar um detalhe, aqui é um podcast, está cheio de godo barbudão ouvindo a gente.

Bia                 … ah.. mas eu vou dizer, eu agora me tornei apaixonada por gordos barbudos, mas é aquela história, o meu coração é daquele gordo ainda e eu estava com ele há um ano e pouco, eu comecei a ter problemas de pele, isso era 96 e eu ia no dermatologista e ele ah não, eu dizia que eles tiravam bifes da gente, faziam biópsia, nada conclusivo…

Luciano          Que ano era isso?

Bia                 … 96, nada conclusivo, nada, em momento algum passava na cabeça deles qualquer coisa relacionada à HIV porque ainda se falava no grupo de risco e uma mulher de quase 50 anos com parceiro fixo, com família, com curso superior, nada disso, nada, nada, nada nada, não tinha nem se pensava numa coisa dessas e eu levei um bocado de tempo eu passei por oito médicos, eles no final já estavam pesquisando câncer de pele, leucemia, coisas nessa área e nada, nada, nada, até que a minha nora, casada com meu primeiro filho, ela me disse olha, tem um dermatologista muito bom que é quase da nossa família, quem sabe tu vai lá, porque eu já tinha feridas pelo rosto inteiro e enquanto estava só no corpo não era nada, era uma delícia porque o médico mandava passar creme, então a festa da gente começava com ele me passando cremezinho, era tudo de bom, bom eu fui no dermatologista e ele fez as biópsias também e aí, olha só, eu não ia sozinha a médico porque não ficava bem mulher ir sozinha a médico, eu tinha ido a médico o meu terceiro filho, para buscar os resultados e o médico pediu para eu passar para outra sala e ele perguntou para mim num constrangimento extremo se eu me importava de fazer um teste de HIV, bom, se ele tivesse me contado uma piada eu não teria rido tanto, eu dei uma risada, eu disse doutor, quem o senhor está pensando que eu sou?

Luciano          Isso nós estamos em noventa e?

Bia                 … seis…

Luciano          seis, que ainda era o começo dessa história, não tinha…

Bia                 … não, já era início de 97, daí que entra…

Luciano          … quer dizer, na verdade não era o começo, já se sabia que existia, mas de novo, era aquela coisa do grupo de risco.

Bia                 … sim mas era naquela época se falava em câncer gay, eu me lembro da propaganda da época que aparecia AIDS e aí um carimbo, = morte. Aí eu disse para ele, eu faço sim, eu sei quem eu sou. Daí ele me olhou sério e disse assim, a senhor também pensa que AIDS tem alguma coisa ligada com moral e conduta? Eu olhei para ele rindo: não tem? Ele disse não senhora. Foi a primeira vez que alguém me disse que HIV ou AIDS não tinham relação nenhuma com moral e conduta, tá? Mas eu achei graça daquilo tudo e ele me passou a requisição e depois eu contei para o meu filho, dando risada, olha só, ele me levou para outra sala, constrangido de falar na tua frente e aí nós saímos rindo os dois e naquela época eu não sabia de nada, de coisa nenhuma a respeito de HIV que não fosse Cazuza e eu fui fazer o exame no meu plano de saúde, maior burrada, porque se eu tivesse sabido que a gente fazia com aconselhamento num posto de saúde, coisa assim, eu não teria levado o susto que levei, eu fiz no plano de saúde e peguei no laboratório, um balcão, meu resultado, mas a gente se protege muito, eu abri o meu resultado e lá estava escrito: reagente. E a gente se protege de não sofrer, eu digo legal, reagente, meu organismo reagiu, não tenho nada, era o que eu queria e eu saí caminhando, era um dia lindo de sol e no meio do caminho eu disse só um pouquinho, mas se deu reagente é porque reagiu e se reagiu é porque é positivo, aí eu parei, abri a bolsa, olhei de novo e as letras pequenas diziam, reagente = positivo, bom eu brinco que a sensação que eu tive daquela história em quadrinhos, eu passeia ter uma nuvem negra na minha cabeça, querendo entender como eu, que tinha tido três homens na minha vida, eu estava com HIV, eu não era promíscua, eu não consegui entender isso, mas por que eu? Anos depois eu fui descobrir que essa é a pergunta que todos nós fazemos quando temos um diagnóstico positivo: por que eu? E aquela nuvem negra, aquela coisa, eu fiquei caminhando pelo meu bairro e tentando… e aí eu fui para casa, peguei o telefone e liguei para o meu marido que trabalhava na delegacia do trabalho, na área de segurança do trabalhador e só consegui dizer para o meu gordo, Carlos, eu estou com AIDS, nem sabia a diferença entre ter AIDS e HIV, na realidade eu estava só com HIV e deu aquele silêncio do outro lado e ele só consegui dizer para mim: eu estou indo para casa. Meus filhos eram adolescentes, minha filha mais moça tinha treze anos, só que a minha filha mais moça é diferente de mim, ela é enorme, alta, jogadora de basquete, forte e eu não tinha falado nada para ela e eu fiquei caminhando com aquele exame na mão e aí meu gordo chega e eu esperando que ele me desse um abraço gostoso e dissesse vai passar… Só que eu não contava com o desconhecimento que se tinha daquilo tudo e que ele também tinha medo e isso eu gosto de falar porque muita gente se separa por causa de uma situação dessas e a gente tem que deixar as coisas passarem. Ele entrou desesperado, ele entrou e disse, eu sou filho único, a minha mãe não caminha, depende de mim para tudo e agora eu vou morrer, na cabeça dele, ele estava infectado também e ele olhou para mim e disse, tu é uma assassina, pô ele sabia que eu não sabia de nada, quando ele disse tu é uma assassina minha filha saltou, não sabia nem o que era, veio, começou a bater nele, anos depois a gente ficou sabendo que ela quebrou três costelas dele, a gente nem imaginava nada daquilo, mas foi assim uma baixaria aquilo, um pavor…

Luciano          Sem que ela soubesse de nada, ela não sabia do exame, não sabia nada.

Bia                 … nada, mas para me defender, ele me chamando de assassina, bom…

Luciano          Parece Breaking Bad, o seriado do Netflix, quando as coisas só pioram, quanto mais você fala vai piorando, cada um que chega piora…

Bia                 … mas aí com aquilo ele foi para o banheiro e eu entrei, fui atrás dele, ele  estava com o rosto enterrado na toalha chorando e eu olho aquilo e de repente ele cai no chão, eu digo era só o que me faltava, o meu exame positivo de HIV agora o homem morre aqui, chamei a SAMU, foi a sorte, veio um médico jovem, atendeu o Carlos e aí ele disse para mim,  a senhora fique tranquila, ele teve uma reação de medo, estão atendendo ele, vamos acalmar, ele não teve nada grave, nós vamos conversar sobre isso. Eu me dei conta que eu sequer sabia a especialidade do médico que atendia pessoas com HIV porque isso não era para mim, aí ele explicou que era infectologista e que eu tinha que procurar um, mas que eu ficasse tranquila que as coisas estavam evoluindo e que parecia que já iam chegar medicamentos. Bom aí me indicou onde eu deveria ir e eu fui, eu fui lá e fizeram a retestagem, deu positivo, mas demorava o resultado do teste, aí eu perguntei para a médica, doutora, me fale com franqueza, eu tenho quatro filhos, quanto tempo eu tenho de vida? Ela abaixou a cabeça, rabiscou assim no caderninho e disse: se a senhora se cuidar bem, dezoito meses. Que tal, Luciano? Se alguém te dissesse hoje que tu tinha dezoito meses e aí eu imaginei assim, nove meses saudável, nove meses adoecendo e morrendo, aí eu tinha que,  de alguma maneira, ajeitar as coisas em casa, não deixar dívida para os filhos, coisas assim bem objetivas e chamei os quatro e contei. Eu sempre fui muito verdadeira nas minhas coisas, foi difícil para todo…

Luciano          Que idade eles tinham? A mais nova tinha?

Bia                 … 13…

Luciano          13, o mais velho?

Bia                 … esse já tinha 21…

Luciano          21, 21 a 13, tá.

Bia                 … então a coisa assim foi, um tinha 15, outro tinha… um tinha 17,  outro tinha 15, então… complicado, complicado demais, até porque naquela  época mulher com HIV era vagabunda, o rótulo era esse e o exame que meu marido fez levou 90 dias para vim o resultado, foram os 90 dias mais longos da minha vida…

Luciano          Vocês continuaram juntos?

Bia                 … sim, ele continuou lá em casa…

Luciano          A relação de vocês dois depois do você é uma assassina?

Bia                 … espera, mas ele morava com a mãe dele no edifício do lado do meu, mas ele ia lá em casa, ele continuava ficando comigo mas a gente não sabia nada de nada, a primeira reação é assim e agora? Minha roupa pode ser lavada junto com a deles na mesma máquina? Eu não sabia nada. Bom, um dia ele entrou em casa e disse, velhinha te arruma que nós vamos sair, eu nem perguntei para onde a gente ia e nós saímos caminhando pela nossa rua, daí eu olho para ele, as lágrimas estão correndo, eu digo ih, daí eu digo o que é que foi, aí ele puxou o exame e me alcançou, era o exame dele negativo. Ele não tinha pegado vírus de mim, bom gente, a vontade que eu tinha era de sair gritando de alegria, eu não tinha infectado o homem que eu amava e isso é importante que se fale porque muitas vezes as pessoas acham que as pessoas com HIV infectam de propósito, o vírus pode ficar muitos anos no nosso corpo sem fazer …

Luciano          Sem você se dar conta.

Bia                 … sem a gente saber, diz que um terço da população que vive com HIV  aqui no Brasil, não sabe que tem, então aí eu faço um parêntesis e insisto: cada um é responsável pela sua vida, usar um preservativo não é, ah ele tinha e não me disse, ele podia não saber. Bom, aí eu no meio do caminho eu pensei, nossa, mas ele vai me deixar, aí ele secou as lágrimas e disse, eu não sei nem por onde começar a te pedir desculpa, nós vamos ficar juntos e vamos lutar por isso aí, eu só te peço uma coisa, não te esconde, nós temos que… foi difícil para nós, está sendo difícil para nós, nós temos que gritar isso para o mundo, ele disse, em tua homenagem, eu estou fazendo um seminário sobre AIDS em local de trabalho e nós vamos discutir a situação do trabalhador que vive com HIV  para que ele não  perca seu emprego.

Luciano          Isso era 96 ainda?

Bia                 Já 97.

Luciano          Já 97, tá.

Bia                 Início de 97. Aí ele disse, em outubro vai ter o seminário mas eu vou te pedir que tu faça junto comigo a abertura do seminário, contando que tu vive com HIV. Nós temos que começar a mostrar que mulheres, com família, com marido, com parceiro fixo, vivem com HIV também e nós temos que mostrar que esse vírus não muda quem as pessoas são, quem é sério, honesto e digno continua sério, honesto e digno. E ele disse, porque o grande problema que se tem, isso em 97, é que as pessoas estão escondidas, esse problema agravou muito até hoje, mas enfim, então nós fomos abrir o tal do evento e…

Luciano          Você estava trabalhando no tribunal…

Bia                 Já estava aposentada por tempo de serviço.

Luciano          Você já tinha aposentado, ok.

Bia                 … já tinha me aposentado e, foi tão doido aquilo, porque na abertura da mesa estava o presidente do Tribunal do Trabalho, porque era AIDS no local de trabalho, estava um ministro da saúde e o ministro do trabalho e ele passa a fala para mim e eu disse que eu estava representando ali os trabalhadores que viviam com HIV, porque eu tinha HIV, não sei o quê, não sei o quê, o detalhe é o  seguinte, em final de 96 início de 97, a gente ficou sabendo tempos depois que foi o boom de infecção em mulheres casadas, mulheres com parceiro fixo e eu fui, no Rio Grande do Sul, a primeira mulher que mostrou a cara dizendo que vivia com HIV. Bom eu não preciso dizer que eu desci daquela mesa rodeada de jornalista e atrás de um jornalista estava o presidente do tribunal que eu tinha me aposentado e ele botava as mãos na cabeça e dizia assim, tu só fazendo um parêntesis, meu pai tinha sido presidente do tribunal, quer dizer, eu, dentro de tudo o que se vivia eu não era gentinha, eu era uma pessoa igual qualquer outra e não aquela fantasia que existia de que HIV era para quem não tinha uma boa conduta, esse mito eu também pensava, então ele só sacudia a cabeça assim horrorizado com aquilo, bom, eu me lembro…

Luciano          Dá uma pausa para mim, Bia, como é que foi contar para os seus quatro filhos no momento em que você não tinha segurança nenhuma do que ia acontecer, a única informação que você tinha era que ia durar dezoito meses, é isso?

Bia                 E eu falei para os meus filhos nisso e foi uma das coisas mais lindas que eu já vivi na minha vida, meus filhos de presente para mim se dedicaram a me levar em lugares que eu os levava quando criança e o que eu tenho mais profundo, marcado, foi o circo, eles me levaram no circo e nós comendo aquele algodão doce, o palhaço fazendo palhaçada e nós cinco chorando, porque nós estávamos nos despedindo e eles dizendo que tinham gostado muito de ir ao circo comigo, o pôr do sol no  Guaíba, sabe assim despedida de carinho, uma coisa incrível e eu brinco com eles que a coisa foi, passaram os dezoito meses, eu continuei aqui e aí foi outro ano e outro ano, depois começaram a me pedir dinheiro emprestado outra vez…

Luciano          Tudo voltou ao normal

Bia                 … bom…

Luciano          Você vê como é essa coisa aqui que loucura que é isso aí, uma médica criou uma situação para vocês que era absolutamente dispensável…

Bia                 … não, na realidade não foi ela que criou, fui eu que perguntei, eu que provoquei.

Luciano          Sim, mas ela respondeu, ela fez uma … ela botou no papel e falou dezoito meses, de onde veio aquilo?

Bia                 É que na realidade o tempo de vida era muito pequeno porque não havia medicação, Luciano, não tinha, não tinha nada, então hoje quando eu vejo os jovens que se infectam desesperados com a medicação, eu digo, ergam as mãos para o céu. Não, mas tem efeitos colaterais. Eu digo, efeito melhor que existe na medicação é a vida, então a primeira medicação que chegou, ela chegou com uma ideia de que nós viveríamos mais dez ou doze anos, nesse meio tempo nasceu minha primeira neta e no batizado dela eu chorei desesperadamente porque eu não ia vê-la fazer quinze anos.

Luciano          Ente 96, 97 que você descobriu isso tudo até você receber a primeira medicação, quanto tempo levou?

Bia                 Bom, aí é o seguinte, a medicação chegou e existiam dois parâmetros de controle da doença, CD4 que é o número de células de defesa do organismo e a carga viral, naquela época só existia o exame de CD4, a carga viral era feita no exterior e eu consegui através do meu plano de saúde, fazer a carga viral no exterior e a minha carga viral era de quase 1 milhão de cópias por mililitro de sangue e a médica, que daí já era uma outra, ela disse, Bia, tu tem que começar a tomar a medicação já.

Luciano          E esse número é um número alto?

Bia                 Altíssimo, altíssimo e se não tu vai acabar adoecendo, acabar tendo AIDS e o detalhe era o seguinte, pelo Ministério da Saúde, o CD4, número de células de defesa tinha que ser abaixo de 200 e eu tinha 216, bom aí começou a minha luta pela vida, os remédios vinham do exterior, naquela época a gente conseguia comprar e estava mais ou menos uns 2.800 dólares por mês com o dólar lá em cima, nós perdemos tudo em termos de dinheiro, Carlos e eu, tudo, vendemos carro, o carro que eu tinha dado para o meu filho foi recolhido, ali eu aprendi a ter nome no SPC, a receber telefonema. Quando o Carlos vendeu o imóvel que ele tinha na praia, eu disse mas e as tuas filhas? Ele me abraçou e disse: é a tua vida. Nossa, tinha dias que eu tinha médico, que era longe da minha casa e a gente tinha dinheiro que tinha que decidir, ou pagava o ônibus ou comprava pão, se eu estava bem, a gente ia a pé, saía mais cedo e ele era muito otimista e a gente ia olhando as vitrines para escolher móveis, como seria a nossa casa quando a gente reestabelecesse tudo, ele me injetava alegria de viver e… nossa…. ou então, quando eu não estava bem não se comprava pão nem nada e ia de ônibus, de repente passou essa história do ministério da saúde, quase um ano e eu pude começar a receber a medicação. Gente, os remédios antigos eram terríveis, eu sempre fui gorda e aquela coisa, gostava de comer bem e tinha que fazer jejum três, quatro jejuns por dia, eu não conseguia acertar meu jejum, era uma loucura, até que de repente o remédio não precisava mais jejum, aí eu passei a tomar um outro que tinha que ficar na geladeira e às vezes a gente viajava e não tinha como ficar na geladeira, então as coisas eram cheias de problemas, mas para mim não era problema, era uma gargalhada gostosa porque me garantia viver, dez, dioze anos, aí os remédios foram sendo aprimorados cada vez mais, cada vez mais e quantos anos faz? Vai fazer vinte, vinte que eu tive o diagnóstico…

Luciano          dezoito meses se transformaram em vinte anos.

Bia                 … é… em vinte anos…

Luciano          Você está bem?

Bia                 Estou ótima.

Luciano          Super bem.

Bia                 É aquela coisa, essa médica maravilhosa que foi a última que eu tive, ela se aposentou, mas uma vez ela me internou para fazer os exames todos e ela voltou bem séria e disse assim, Bia, tu tá com um problema muito sério que vai te levar à morte e eu não posso fazer nada, eu disse mas o que que eu tenho  agora, doutora Dirce? Aí ela disse para mim assim: velhice. Então aquela história, eu tenho orgulho da minha velhice viu.

Luciano          Naquele momento em que você chegou em público e se revelou, foi a primeira mulher, etc e tal lá do Rio Grande do Sul, que os jornalistas vieram, você ganhou então o rótulo.

Bia                 Mas ninguém chegava perto.

Luciano          Pois é, é isso que eu quero saber, a mulher que tem AIDS, como é que foi esse impacto no teu círculo de amizade, na tua família, nas pessoas, nos vizinhos, como é que foi?

Bia                 Ah foi engraçadíssimo. Ali eu descobri quem era amigo de verdade. Era muito louco tudo isso porque eu tinha colegas do tribunal que atravessavam a rua para me abraçar, eu tive colega que eu encontrei dentro de um shopping e ele me abraçou e disse no meu ouvido: eu também tenho. Aí eu abracei ele com carinho imenso porque ele não teve a coragem de se assumir…

Luciano          Sair do armário, vamos lá, sair do armário.

Bia                 … sair do armário, querido é difícil sabe. Até que um dia o Carlos disse para mim assim: vamos fazer uma coisa, preconceito existe, mas não assume, preconceito é do outro, tu sabe quem tu é, então esquece, se tu pode, o grande problema com o preconceito é que muitos dos movimentos agridem quem tem preconceito e eu acho que não é assim, aí eu brinco com a frase do Guevara: “hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”, é aquela história, endurecer sem perder a ternura jamais, por quê? Eu não sabia nada, então eu vou esclarecer, no condomínio que a gente morava, tinha piscina e eu entrava com os meus netos já na piscina, aí com visibilidade, em todo o bairro me conheciam e tinha… quando eu entrava com os meus netos, tinha uma senhora que tirava os filhos, a terceira vez que ela fez isso eu fui atrás, eu posso conversar contigo? E ela sim, o que é que houve? Eu disse, eu já notei que tu tira teus filhos da piscina quando eu entro. Daí eu disse, aqueles ali são meus netos, tu acha que se houvesse risco eu ia botar meus netos em risco? Ela parou e me olhou e disse, mas não passa o HIV? Eu disse não querida, nem que eu fizesse uma loucura de fazer xixi aqui dentro, porque o vírus, o HIV é tão vagabundo que fora do nosso organismo ele não sobrevive e ele não é como pulga ou como pilho que fica saltitando nada, ele está lá dentro do meu corpo e eu faço tratamento, eu tenho a carga viral indetectável que é o que a gente busca, fica tranquila, eu não passo HIV no convívio social e daí eu disse, o único risco seria para o meu marido que na relação sexual, se a gente tivesse ela desprotegida. E aí ela se sentou e aí começou a me fazer pergunta e pergunta e pergunta, eu digo, isso é que a gente tem que fazer, a gente tem que abrir o jogo e se botar à disposição das perguntas, é que as perguntas são do medo e então tem coisas interessantes que eu vivi, por exemplo, no interior lá do estado, eu fiz uma palestra uma vez, na saída um médico veio falar comigo disse assim: interessante sua palestrinha, eu digo obrigada, doutor, o senhor usa camisinha? Daí ele deu uma risada, não, eu sei com quem eu ando. Eu digo bah doutor, meu marido também sabia, então essa é a realidade, generalizando, todos nós que vivemos com HIV hoje, fizemos o mesmo que vocês fazem, não acreditavam que pudessem, que fossem vulneráveis efetivamente ao vírus. Enquanto nós estivermos escondidos, nós pessoas com HIV, o mundo não vai entender que nós somos gente iguais a eles, nós começamos a trabalhar na CIATES, das empresas, com palestras, o Carlos e eu e nós tomávamos água no mesmo copo, nós mostrávamos os nossos exames, o dele negativo, o meu positivo e mostrar que não havia risco, ele não ia se expor a isso. Então esse tipo de realidade é a que a gente tem que por, as empresas, naquela época a gente tinha feito um cálculo assim a grosso modo, 3% da população das empresas é infectada com HIV, no final das palestras eles nos diziam no ouvido, então a gente baixa a imunidade mas não baixa a intelectualidade, a capacidade de trabalho, quem a gente é continua sendo. Agora, como diz a musiquinha, aquela do Erasmo Carlos, proteção demais desprotege e o sigilo que eu delicadamente chamo de maldito sigilo, faz com que as pessoas fiquem extremamente vulneráveis, fechadas dentro de casa, vivendo monstros ao seu redor, é a famosa hora de  sair do armário e esclarecer, falar, o que eu mais quero é que me perguntem, tem dúvida pergunta, vamos conversar.

Luciano          E combater o grande… que você tinha uma luta interna sua com o vírus que para combater você vai usar o remédio e tudo mas a luta externa contra a ignorância e que é o problema.

Bia                 Eu disse, a AIDS um dia vai ter cura, mas a ignorância humana não, porque isso foi uma frase do Carlos porque tinha um vizinho meu que não entrava no elevador comigo, como se respirar junto comigo pudesse dar qualquer problema, mas o mais engraçado é que por muitos anos os jornalistas iam lá em casa fazer entrevista conosco, aquela coisa toda, eu oferecia cafezinho, refrigerante, não, não obrigado, aí na saída eu dizia para ele, eu não vou deixar vocês saírem assim, eu só quero dizer uma coisa para vocês. Eu vi que vocês não querem nada mesmo, né? Eu só quero lembrar para vocês, nós que vivemos com HIV ou com AIDS, também vamos a restaurante, se HIV pegasse assim, o mundo já estava infectado. No ônibus, uma ocasião, um rapaz entrou correndo e eu estava no banco do lado e eu fui para a janela para dar lugar para ele e ele não sentou e eu disse pode sentar, e ele diz bem alto, era só o que me faltava sentar num banco quente de uma mulher com AIDS. Bom, banco quente de uma mulher com AIDS, pelo amor de Deus, eu não tenho AIDS, eu tenho HIV, eu não estou doente, não tenho nada, estou ótima é a grande diferença, mas um banco quente, pelo amor de Deus.

Luciano          Você mandou ele para puta que o pariu ali ou não?

Bia                 Não, eu olhei, dei um sorriso, fiquei com pena da burrice dele, porque certamente ele vai para a cama sem camisinha.

Luciano          Eu vou te dar um truque então, quando isso acontecer você fala para ele, olha, fique aí que eu vou para puta que pariu, você continua sendo educada, você está sendo tremendamente educada, fica aí que eu vou para puta que pariu, vai valer igual.

Bia                 Nossa, olha querido, tem cada coisa assim… a história de preservativo, sobrou então a situação de eu e o Carlos termos que usar preservativo nas nossas relações, se ele não tinha pegado até ali eu não queria que ele pegasse. Só que tem um detalhe, eu sou da primeira geração da pílula, eu nunca peguei na minha mão um preservativo, nunca tinha pegado e ele não suava também, um homem solto, livre, bom, ele só conhecia uma marca e ele foi lá e comprou aquela para a gente experimentar, ah eu sou horrível, ele colocou aquele preservativo e eu olhei assim, estourei na gargalhada, parecia o Brasil dentro do Uruguai tá, tu pode imaginar aquilo tudo? E ele chamava aquele preservativo de a estranguladora, e aí nós começamos a procurar preservativos para ver se existia uma coisa diferente e uma vez nós fomos a Santa Maria fazer uma palestra na universidade e no calçadão de Santa Maria tinha uma farmácia e nós começamos a olhar preservativo e tinha uns preservativos abertos, diferentes, e ele começou a se entusiasmar e nós dois olhando aquilo tudo e de  repente nós olhamos os três rapazes estavam ás gargalhadas dos dois velhos olhando preservativo, porque na fantasia dos jovens, depois dos cinquenta anos ninguém mais faz sexo e eu acho tão divertido isso, porque a gente nasce sexuado e morre sexuado, e aí ele delicadamente disse para eles, vocês estão pensando que velhinho não faz nada é? Bom, ali nós nos deparamos pela primeira vez com o preservativos da DKT Internacional e levamos para o hotel, gente, ali começou a nossa festa, tá? Ali eu comecei a aprender a ser uma mulher inteira que é outro problema que existe, a mulher hoje em dia está muito livre e independente, agora ela não entendeu ainda que o homem só vai usar um preservativo se ela colocar nele com carinho e começar a festa amorosa ali, naquele momento, então é uma coisa assim… isso tem que ser falado, porque amor e sexo são coisas, pelo menos para nós mulheres, muito… uma coisa só, para o homem é um pouquinho diferente, mas enfim, ele gostava de mim, queria continuar comigo e eu tinha que achar um jeito de não perdê-lo e  aí foi muito legal, que em Rio Grande, eu fiz uma palestra para umas prostitutas jovens, de tarde, no final elas, para me darem de presente, resolveram me ensinar a colocar preservativo com a boca e a mocinha me disse assim, ah a senhora bota assim a camisinha no céu da boca, segura com a língua, põe na frente… e aquela coisa eu fui fazendo e aí quando ela disse, aí assenhora se abaixa e põe no pênis, eu fui fazer aquilo e respirei fundo, meio rindo e veio parar a camisinha na minha garganta e eu me sufoquei e ficou aquilo, fazia assim… na minha garganta e tinha uma enfermeira, então ali ela fez um procedimento que saltou a camisinha e eu só pensava assim, imagina só, eu morro agora com um preservativo na garganta e aí sai: advogada gaúcha morre com um preservativo no meio de um grupo de prostitutas, bom aí o Carlos brincava comigo que ovelha não é para mato, então coisa de gaúcho tchê, então, essas coisas a gente foi vivendo e foi surgindo camisinhas diferentes e daí surgiu camisinha com sabor, a camisinha texturizada, pelo amor de Deus, quando surgiu essa foi a festa, é uma camisinha masculina extremamente macia e que foi feita pensando na mulher, ela tem umas ondinhas, ela se chama wave, eles agora vão mudar até o nome dela, mas é daquelas coisas assim, a gente começou a descobrir que podia existir vida depois do HIV com preservativo, com mais de cinquenta anos os dois e aí eu comecei a me entusiasmar de ver que nem os jovens estavam se dando conta de que a gente pode ser feliz em qualquer idade, pode fazer um sexo gostoso em qualquer idade, mesmo se cuidando.

Luciano          E olham o preservativo como uma… ele não é objeto de prazer o preservativo…

Bia                 Na fantasia…

Luciano          … pois é, não é, ele está lá para estragar, pô a brincadeira tá boa, agora para e bota camisinha.

Bia                 … comer bala com papel, mas é aquela: para e bota camisinha, tu já começa a festa, se a mulher for esperta que eu aprendi a ser esperta depois, tu já pega a camisinha e tu já vai fazer a festa começar ali, eu tive que aprender.

Luciano          Olha que visão legal que você está dando aí, que você está invertendo o jogo, quer dizer, não é obrigação do homem levar a camisinha no bolso e vestir a camisinha para poder fazer o sexo, aquilo é uma coisa do casal e a mulher se apodera daquilo e transforma aquilo num objeto de brincadeira e tudo mais.

Bia                 Uma brincadeira amorosa e eu acho que a gente… nós estamos num mundo tão criativo com jogos e coisas, vamos ser criativo no jogo do amor e não precisamos entrar nos cinquenta tons de cinza, pode ter amor na história, não precisamos de violência nem nada.

Luciano          Bia, deixa eu te perguntar então. Então você, de repente, começa a ser demandada para falar a respeito, percebe que você tem um papel a desempenhar ali, começa a fazer palestras, começa a contar história, etc e tal, encontrou o pessoal da DKT, mas você assumiu então um papel de… eu não sei, embaixadora de alguma coisa que eu não sei exatamente o que que é…

Bia                 Embaixadora de nada, eu descobri, primeira coisa, eu descobri que é muito ruim ter HIV, por causa do preconceito e que eu não gostava disso e que eu não ia assumir o preconceito que a sociedade quer me impor, isso eu deixei claro desde o início e que o HIV não detona com a vida de ninguém se a gente não deixar, então eu brinco, naquela época eu brincava que eu era “HIVéia” e atualmente eu sou uma “HIVó” então esse tipo de coisa, brincando a gente vai conseguindo falar com mais tranquilidade sobre uma realidade pesada que foi empurrada para baixo do tapete. Eu te pergunto, por que que as pessoas com HIV estão escondidas? Num país como o nosso, com tanta gente corrupta se mostrando na TV, rindo e tudo, o que nós fizemos de tão errado? Sexo? Todo munda faz. Não é? E sexo não é errado, sexo não é pecado, é a famosa história da briga religiosa com as pessoas com HIV, com os homossexuais, a diversidade é um direito de cada um…

Luciano          Praga gay, né? Que nasce como a praga gay.

Bia                 … mas sabe, Luciano, isso também eu fui aprendendo, porque eu comecei a conviver com pessoas que eu nunca tinha convivido, eu comecei a conviver com homossexuais, com lésbicas, com transexuais, com travestis e tive a extrema surpresa, com prostitutas, a extrema surpresa de descobrir que elas são tão gente quanto eu; eu talvez tenha tido mais oportunidade de vida, consegui ter um outro padrão de vida, agora, ninguém é melhor que ninguém, não. E aí eu comecei a entender a homossexualidade, eu agora comparo assim homossexualidade é como a fome e o sono, cada um tem o seu gosto. Eu durmo tarde, quando amanhece, eu adoro peixe, o meu irmão mais velho, por exemplo, dorme quando escurece e a minha filha não come peixe, só come carne. Eu gosto de homens, eu sou heterossexual, a minha filha é lésbica, tem uma companheira e ela nasceu assim e ela sempre foi assim e aí eu fico pensando, eu sou melhor que ela porque eu sou hétero? Não. De jeito nenhum. E isso é uma das coisas que passou a ser minha bandeira também, que cada um tem direito de ser quem é, sem julgamento, nós não estamos aqui para ser julgados por ninguém e aí eu comecei depois a trabalhar com uma outra população que estava se infectando muito no Rio Grande do Sul, que eram os idosos, o meu time e daí eu me dei conta de uma coisa trágica, ninguém investe na defesa da saúde do idoso, que idoso não da lucro, não é? Então é complicadíssimo porque a prevenção para o idoso tem que ser com camisinha feminina porque o homem com 60, 70 anos não tem uma ereção bem completa, então ele não vai usar um preservativo e o gel, na época que eu comecei a entrar nesse mundo, gel era coisa de gay, e a mulher pós menopausa? Mulher pós menopausa não tem lubrificação sexual, então ela é um prato cheio para fissuras e ter problemas de DST’s, aí eu comecei a brigar, eu quero gel para as mulheres também, preservativo feminino para idosos, de repente eu fiquei sozinha, ninguém…  os movimentos não estavam reivindicando esse tipo de coisa e foi…

Luciano          Quando você fala “fiquei sozinha”, você era um indivíduo, você não era uma ONG, você não era um…

Bia                 … não, depois nós entramos…eu fui conhecer a AIDS de perto no GAPA do Rio Grande do Sul, depois….

Luciano          GAPA é o Grupo…

Bia                 … de Apoio às pessoas com AIDS, depois eu não gostei de algumas coisas lá e eu saí, daí foi criada a Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV que era só um movimento de pessoas vivendo com HIV, eu fiz parte desse movimento, ajudei a criar o movimento lá e em 99 eu fui para a Colômbia e ajudei a criar o movimento latino americano e caribenho de mulheres vivendo com AIDS, que daí foi o boom no mundo, de mulheres e voltamos para o Brasil, eu e mais sete mulheres, a gente criou no Brasil o movimento nacional das cidadãs positivas, de repente as coisas  não me agradaram também porque havia luta interna, brigas entre movimentos, brigas entre ONG’s, eu digo gente, nós não podemos parar, nós não podemos ficar brigando…

Luciano          O inimigo está lá fora.

Bia                 … exatamente, está dentro de nós e lá fora, aí até que a coisa foi tão intensa que em 2006, quando morreu o Carlos, Carlos teve câncer, foi um aprendizado terrível para mim, de que até então para mim AIDS era igual à morte e ali eu aprendi que viver é igual morrer, cada dia se morre mais um pouquinho, ele teve um câncer, ele teve um diagnóstico tardio, ele já estava tomado e ele se foi em seguida, então toda a minha força que era aquele homem estava indo embora e eu não consegui ajuda-lo a vencer a doença dele e ele se foi, muita gente diz que ele morreu de AIDS e não  é verdade, ele foi sem nenhum vírus meu, porque é verdade que quem ama cuida, eu brincava que ele sofria de uma doença incurável também que era otimismo crônico infectante, ele era um otimista por natureza e esse otimismo ele passou para mim e realmente, a gente sendo otimista e acreditando que vai conseguir, a gente já está na metade da conquista daquilo que se quer, então meus filhos me rodearam e continuaram me apoiando, aí eles iam em entrevistas comigo, eles estavam sempre me dando força e foi muito gostoso.

Luciano          Em 2006 isso.

Bia                 Não, depois já, mais tarde…

Luciano          Ele morreu em 2006.

Bia                 … é, 2006. E aí em seguida que ele faleceu, uma carta anônima, eu fechei a nossa ONG porque eu sozinha não queria continuar e os bens foram doados para entidades que lutavam contra o HIV e uma carta anônima foi espalhada pelo Brasil inteiro dizendo que eu tinha roubado dinheiro público, que todos os bens da ONG eu tinha embolsado e em Brasília então abriram um processo crime contra mim e eu depus quatro horas e meia.

Luciano          Você como presidente da ONG?

Bia                 Eu era representante legal.

Luciano          Da ONG?

Bia                 Da ONG.

Luciano          Tá.

Bia                 Nenhum dinheiro saía sem a minha assinatura, era eu que administrava…

Luciano          Que dinheiro era esse?

Bia                 … porque naquela época o ministério da saúde financiava as ONG’s, apoiava os projetos das ONG’s…

Luciano          É aquela história, o Brasil é o país onde existe a organização não governamental e governamental e vem o dinheiro do governo.

Bia                 … eu tive um cuidado para encerrar a nossa ONG, que como o dinheiro vinha do ministério da saúde, do departamento de AIDS, eu fiz as doações só para quem trabalhasse na prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, HIV e AIDS. Depois que eu depus aquelas quatro horas e meia, a juíza fechou o processo e pediu para me trazerem um cafezinho e disse, agora esqueça quem eu sou, eu quero lhe pedir um favor, não pare de trabalhar, era isso que eles queriam, a senhora provou que podia trabalhar de forma honesta e correta, está tudo aqui, é aquela história, eu sou advogada, eu fui advogada, então a documentação eu tinha toda, a responsabilidade era minha e eu sabia que o dinheiro não era meu, bem, só que dai, aí a DKT… voltou para mim, eu não vou trabalhar mais em prevenção nem com preservativo do governo, nada, eu passei a comprar preservativos de uma ONG equipe voluntária que é ligada à DKT e eles me faziam… eu podia pagar como pudesse…

Luciano          Mas você comprava para o que? O que você fazia?

Bia                 … para as minhas palestras, eu distribuía…

Luciano          Era o teu programa então, era palestras e distribuição pelas palestras, tá.

Bia                 … o detalhe é o seguinte, eu não cobrava palestra, tá? E ainda investia comprando preservativos bons para o pessoal ver o que existia. Isso eu fui fazendo, fui fazendo, fui fazendo e de repente a situação econômica começou a ficar ruim por uma série de coisas…

Luciano          Isso nós estamos em 2008, 2009?

Bia                 … é, de lá para cá…

Luciano          Em 2008 é a grande crise, sub prime, aquela história toda.

Bia                 … bom, mas o ano passado, não, foi 2014, eu comecei a cobrar palestra porque eu não  conseguia mais me manter e eu me senti muito mal, me senti muito mal  porque é aquela história, profissão eu tenho e eu não queria viver da AIDS, eu vivo com HIV mas não queria viver da AIDS e até que o pessoal da DKT ficou sabendo do trabalho que eu fazia, me chamaram para fazer uma palestra aqui e nunca mais… eles não iam admitir que eu comprasse preservativo, eles passaram então a me mandar os preservativos que eu pedisse e tudo e foi o presente mais lindo que eu ganhei porque eu voltei a não cobrar minhas palestras, a fazer o meu ativismo real, não é para de maneira nenhuma encher bolso, é de alguma maneira eu sempre digo, se nesses anos todos, com palestra, com bate papo, todas  as coisas que me aparecem, eu conseguir tirar uma pessoa desse HIV maldito, eu já estou feliz e a coisa que eu mais procuro fazer as pessoas entenderem, que nós somos gente igual qualquer outra.

Luciano          Bia, você sabe que esse aqui é um programa de empreendedorismo e liderança, esse é o pano de fundo dele, eu estou batendo papo com você, comprido aqui…

Bia                 Eu sempre falo demais.

Luciano          … mas não, não, você não fala demais não, já peguei gente que fala muito mais ainda, o que eu quero bater um pouquinho nessa tecla com você é essa tua capacidade de fazer as coisas acontecer, você se depara com um problema que teria derrubado qualquer um, teria derrubado qualquer um, você teria gente que ao desistir da vida, gente que ia se matar, você falou que pensou, num momento,  você chegou a pensar no suicídio…

Bia                 Mas não nesse, quando o pai dos meus filhos me deixou.

Luciano          Ah, quando ele te deixou, tá.

Bia                 É.

Luciano          Que você ainda estava fragilizada, etc e tal.

Bia                 Essa é a diferença, são dois momentos marcantes na minha vida, o primeiro sem amor e o segundo com amor. Então o que eu digo é o seguinte, se a gente tem quem dê força para a gente, não precisa ser um amor, pode ser uma entidade, alguma coisa, a gente vai adiante sim.

Luciano          Se você tiver a certeza que tem alguém compartilhando com você, não precisa ser compartilhar da doença, é compartilhar pelo esforço de vencer, de seguir adiante.

Bia                 Com certeza, não desiste e isso eu levo para a vida.

Luciano          Na tua história está claro o papel do gordo…

Bia                 É, o gordo foi a minha luz.

Luciano          … que quando ele entrou ali e te chamou de assassina eu já queria dar uma porrada nele e em seguida ele…

Bia                 Sim, a minha filha deu.

Luciano          … ele se revela em seguida como…

Bia                 É aquela história, isso é o que eu saliento essa história dele, ele merecia que eu nem contasse isso, mas eu conto porque o medo é humano e todos nós temos. E eu percebo assim o medo de morrer, muita gente tem medo de morrer, eu não tenho, não sei porque, que bom que não. Até porque eu sempre brinco, o dia que eu morrer se preparem que o céu vai tremer…

Luciano          Aí, como é que é que você falou, você falou que você é hoje uma ota, como é que é?

Bia                 Uma HIVó?

Luciano          É, você é uma HIVó.

Bia                 É, HIVó.

Luciano          Quando você morrer você vai virar uma HIVota, você vai entrar voando lá em cima e vai estar fazendo…

Bia                 Eu quero acreditar que existe reencontros, não tenho dúvida disso assim que eu tenho esperança, sabe, quando eu fiz palestra para um grupo de velhinhas, é uma das coisas que eu falo sempre, uma me perguntou se masturbação era pecado? Aí eu disse para ela, olha aqui, querida, pecado é fazer, na minha visão, é fazer mal para os outros e para ti também. Eu disse, eu não tenho religião, eu tenho fé, porque religião é coisa dos homens, com julgamentos e suas vaidades, então eu prefiro ter uma ligação direta com esse ser lá de cima, seja lá como tu queira ser, agora, eu só te digo o seguinte, se Ele nos fez com tanta zona de prazer no corpo, é porque ele quer que a gente use, mas que a gente use com cuidado e se amando e amando ao próximo. E a outra coisa, quando as mulheres principalmente, vem, aquele cretino me infectou, eu digo calma, porque que tu não usaste camisinha? Ele não queria, então eu digo é só dizer que não, isso é que é importante, as mulheres tem que se fortalecer, elas tem que aprender a colocar uma camisinha bem colocada, que é a solução sim, agora, culpar o outro, relação sexual é a dois, não importa, hétero, homo, não importa, o outro pode não saber que tem, como eu não sabia, então eu tive a sorte que muita gente não tem, então nós temos que saber com clareza, o HIV está aí e ninguém tem cara de Cazuza, ninguém é magrinho, somos pessoas absolutamente normais, então menos delírio para não responsabilizar o outro, o nosso corpo, a nossa vida e a nossa saúde é nosso.

Luciano          Bia, deixa eu retomar aqui um negócio que eu estava falando aqui agora há pouco, daquela questão do empreendedorismo e de fazer acontecer e etc e tal, você então tomou uma porrada que poderia ter derrubado muita gente e hoje você lida com muita gente que está numa situação como a que você estava lá, então eu acho que você deve se encontrar diariamente com pessoas que estão em todo tipo de situação em nível de desespero etc e tal, tem que ter uma baita de uma armadura emocional para poder que essas coisas batam em você e não te contaminem, como é que você faz?

Bia                 Não, eu sou sincera para ti, agora…

Luciano          Deixa eu só dizer porque eu estou perguntando isso, você para mim assumiu o papel da liderança da tua vida, você decidiu que quem ia fazer acontecer era você, você falou num momento chave aqui da entrevista que você não ia aceitar aquilo, aquelas regras que a sociedade tentou impo para você e nesse momento então você passou a liderar o processo, você é dona dele e sendo assim você está inspirando um monte de gente que está vendo você, queira ou não queira, mesmo que você, quietinha de boca fechada, a sua foto numa revista inspira pessoas, como é que você cuida para essa questão, você é esse ícone hoje, as pessoas vêm, trazem para você aquele mundo de angústias, isso bate em você e não pode te contaminar.

Bia                 … não, o cuidado que eu tenho é a vaidade, o que a gente percebeu, muita gente que também começou a fazer esse tipo de trabalho, que se tornou assim ícone mesmo, se encheu de vaidade e a proposta não é essa também, eu também não sou melhor que ninguém, é aquela coisa, eu…

Luciano          Só faltava eu sentir que eu sou vaidoso porque tenho HIV.

Bia                 … não, não, é aquela história assim, eu sou o máximo porque eu tenho HIVe me mostro…

Luciano          E sobrevivi a ele.

Bia                 … ah não, do HIV eu quero ser o máximo, eu quero ganhar dele, aí sim, agora, me sentir assim ah, não, nós somos muitas pessoas assim, tem muitas pessoas maravilhosas que serviram de modelo para mim, muita gente assim que nossa, que coisa bacana, São Paulo foi um dos primeiros estados que realmente deixou claro, mas no sul, com aquele machismo todo que nós temos lá, eu só me dei bem porque eu tinha do meu lado o Carlos…

Luciano          Sem dúvida.

Bia                 … tá, e eu credito a ele tudo isso, respeito porque era um homem que não tinha HIV e estava do meu lado e me amava intensamente e dizia para quem quisesse ouvir que me amava exatamente como eu era.

Luciano          E ele comprou a luta com você, vocês dois juntos fazendo.

Bia                 O meu orgulho, o Carlos passou a fazer parte da CNAIDS, Conselho Nacional de AIDS do Brasil, como representante do ministério do trabalho e ele foi para Genebra, na UNITS e na elaboração do repertório de recomendações sobre AIDS no local de trabalho que é usado no mundo inteiro até hoje, eu tenho um orgulho imenso desse trabalho que esse homem fez, a quantidade de trabalhadores que nós fizemos mesa de negociação para retornar ao trabalho e a gente sempre fazia mesa de negociação, o empregador concordava, para não ter que entrar na justiça, que era muito demorado, o empregador concordava em botar de volta o trabalhador, só que nós exigimos que antes disso, porque daí toda empresa sabia da situação dele, nós fazíamos uma palestra antes de ele voltar para mostrar que não havia risco. Até hoje eu ainda percebo assim algumas mãezinhas tem preocupação que eu toque nas crianças e nisso eu tenho uma gratidão imensa pelos meus filhos e pelas minhas noras que sempre puseram meus netos no meu colo para que a gente vencesse juntos tudo isso e a primeira campanha do ministério da saúde em 2006, o Carlos já não estava aqui, foi com pessoas vivendo com HIV, eu e o Kazuo Barros, também vive com HIV, no Rio, nós protagonizamos essa campanha e tem um cartaz com fotos minhas, fotos que eu tinha em casa, dando banho na minha neta, que vai me dar um bisneto agora esse ano, então esse tipo de coisa, para  mostrar assim, o cartaz diz assim: você sabe que Beatriz fez depois que soube que estava com HIV? Tudo isso. Então daí está uma festa de natal com a ceia, eu com meus filhos, eu com uma festa na nossa ONG, com os amigos, eu dando banho na minha neta, quer dizer, coisas assim, eu beijando o Carlos, então esse tipo de coisa assim me encantou, porque realmente eles abriram um leque mostrando que a gente tinha vida própria e na fantasia a gente não tem vida própria, a gente é monstrinhos isolados.

Luciano          De novo, a ignorância outra vez, quer dizer, eu pela minha ignorância eu vou tratar, eu não vou dizer tratar mal, eu vou me encher de dedos, eu vou tentar isolar você porque não posso chegar perto, isso é a minha ignorância. Se eu estiver infectado, a minha ignorância vai me trancar dentro de casa e vai construir um mundo…

Bia                 Pois é, tu sabe o que acontece, todos nós temos algum preconceito com relação ao HIV, como eu tinha também, em 83, quando eu estava terminando a faculdade, um médico que estava fazendo direito também, me perguntou, tu viste essa nova doença, Beatriz? Daí eu disse vi. E o que tu pensa dela? Eu jamais, eu falo para mostrar que a gente pode mudar o pensamento, eu estourei na gargalhada e disse assim, é muito simples, a natureza é sábia, os maus vão e os bons ficam, até que de repente eu estava com o atestado dentro da minha visão de má, má de conduta, que eu estava…

Luciano          De novo, retoma aquele primeiro médico que virou para você e falou desde quando HIV, AIDS, tem a ver com comportamento moral?

Bia                 … e esse médico depois chorou comigo, se sentindo responsável, mas o mais lindo dessa história toda é que eu disse, da nuvem negra na minha cabeça, um dia o Carlos entrou em casa com um sol dourado, esse que eu uso no peito. Ele disse esse eu comprei para ti, eu não tenho dinheiro para te dar coisas de ouro, mas ele é dourado e tu vai usar no peito e nunca mais vai faltar sol na tua vida, nunca mais tirei do meu peito depois que ele morreu, é aquela coisa assim, esse é o símbolo que eu tenho, um sol, que nada, nenhuma nuvem tire o meu sol, porque eu aprendi que a gente faz as coisas, é mais ou menos uma figura que eu li recentemente que diz o seguinte, “a vida não tem controle remoto, levanta e muda o canal”, só a gente faz acontecer, não tem dúvida que ao nosso redor tem que ter alguém com a torcida, vai, vai e é tão bom a gente se sentir vitoriosa.

Luciano          De novo, aquela reação do indivíduo, foi Deus que quis, foi graças a Deus, se Deus quiser, bom, legal, ótimo, tá legal, só que se mexa.

Bia                 Cada um com a sua fé, é aquela coisa, como é que me dizia minha avó? Ajuda-te que Deus te ajudará. Faz a tua parte.

Luciano          Bia, você já passou por poucas e boas, 68 anos, vai ter sua bisneta agora, você olha para a frente, o que você vê pela frente?

Bia                 Bom, o que eu vejo pela frente é que a nova geração não viveu aquela tragédia toda, então a medicação que se tem hoje é de primeiríssima, eles tomam um comprimido por dia, eu cheguei a tomar 43 por dia. O coitadismo, a vitimização está muito intensa, então existe um grupo fechado dentro do Facebook só para pessoas vivendo com HIV e eles dizem assim, agora vou começar a tomar o remédio, meu organismo vai ficar deformado. Gente, a medicação que deformava nosso organismo, efetivamente existiu, era Estavudina, foi tirada, é usada agora em última instância, quando não tem mais medicação que resolva, mas ficou a ideia daquelas transformações corporais sérias e feias e terríveis, mas eu prefiro ficar horrorosa, mas viva. E aí eu fico pensando assim, eles estão se queixando tanto, eles preferem não tomar remédio e assim eu encontrei ativistas que pararam de tomar a medicação porque cansaram. Gente, por favor, vamos ter coragem, vamos adiante, tomar remédio o resto da vida? Olha só, quem tem diabetes toma remédio o resto da vida e a outra coisa que eu sempre falo por que nós estamos escondidos? Quem tem hepatite B, pegou o vírus da hepatite do mesmo jeito que nós pegamos HIV, a forma de infecção é a mesma, o vírus da hepatite fora do corpo, vive muito mais tempo do que o HIV, então a chance de passar a hepatite é maior se a pessoa não está se tratando do que do HIV, agora, eles não estão escondidos e nem devem estar.

Luciano          Porque não houve um… não houve aquele momento inicial quando se demonizou aquilo tudo, quando se criou aquela…

Bia                 Mas então quando o pessoal diz assim, mas o preconceito é muito, como é que eu vou me mostrar? Eu digo, só nós vamos conseguir mudar isso aí e  se nós não fizermos o preconceito vai ser cada vez maior e o número de mortes, porque o que está tendo no Rio Grande do Sul, por exemplo, de mortes por AIDS é uma quantidade imensa, é assemelhado à África e  eu digo por quê? Porque as pessoas não tem coragem de assumir e tocar adiante a vida. E se a gente não faz disso um dramalhão, as pessoas ao nosso redor acabam até esquecendo, olha, é uma proposta grande, é uma coisa assim, mas um dia como eu brinco, as catacumbas da AIDS vão estar vazias, e não porque o pessoal tenha morrido, mas porque o pessoal saiu sem gritar ofensa para os outros, se assumindo e cantando: viver e não ter a vergonha de ser feliz, que é o meu hino., esse eu acho que tem que ser o hino de todas as pessoas com HIV ou sem, o grande problema do diagnóstico de HIV é que o preconceito que se tem, quando a gente tem o diagnóstico, a gente tem vestir, aí eu passo a ser tudo aquilo de ruim e isso dói demais, eu passei a ser má, de má conduta na minha visão, não é? E muita gente me vê assim e o meu gordo amado me ajudou a vencer essas barreiras todas e aquela história, e ele dizia assim, nós temos que avisar para os outros que é para todo mundo e a gente avisou para os outros e eu continuo avisando e nossa… e onde entra a DKT, mais uma vez, isso não quer dizer que a gente rompa com o direito a ter prazer no sexo, a ter um sexo amoroso, existem coisas boas e isso tem que ser divulgado e é o que eu mostro nas minhas palestras, as coisas diferentes que existem, a criatividade, eu digo a grande festa do amor, tem que ser feita sim e tem que ser feita com proteção porque infelizmente nós ainda estamos com essas epidemias pesadas por aí.

Luciano          Bia, quem quiser entrar com contato com você, com esse seu trabalho, saber da sua história, se bobear até chamar você para evento,  palestra e tudo mais, como é que te acha?

Bia                 Bom, na realidade eu não tenho um blog, não tenho nada…

Luciano          Está esperando o que para fazer o seu?

Bia                 … pois é, eu às vezes me encolho um pouco sabe, porque já existem tantos blogs, tanta coisa e eu não sei bem como fazer isso, então o que eu tenho são duas páginas no Facebook, uma Beatriz Pacheco, outra Bia Pacheco. A Beatriz Pacheco eu tenho mais restrições, ela tem muita gente,  mas ela foi invadida uma ocasião e eu deletei e seguida, entrei em contato com o pessoal do Facebook, agora ela está protegida, mas são coisas assim, eu me exponho bastante nessas páginas, eu deixo muito claro, então os meus filhos me chamam de HIVéia também, quer dizer, é uma coisa gostosa assim, não existe entre nós problema nenhum com isso…

Luciano          Você está no Facebook então.

Bia                 … estou.

Luciano          Bia Pacheco e Beatriz Pacheco. Não tem outra forma de achar você.

Bia                 Por enquanto não.

Luciano          Não tem um site nada, tá.

Bia                 Não, eu pensei já em fazer site, mas eu me preocupo muito com isso.

Luciano          Você tem que fazer, Bia, você tem que fazer, outro dia eu entrevistei, um dos primeiros LíderCast aqui, eu trouxe o Cássio Barbosa e ele falou para mim, falou que o tesouro maior perdido da humanidade é o livro que não foi escrito e hoje em dia eu posso dizer, é o blog que não foi publicado…

 

Transcrição: Mari Camargo