Não olhe para cima
Luciano Pires -No filme que acaba de estrear na Netflix, um cometa que vai se chocar com a terra dentro de seis meses e 14 dias é o ponto de partida. Durante mais de duas horas vamos acompanhar o astrônomo e sua assistente tentando provar ao mundo que a ameaça existe e que algo deve ser feito.
A partir daí, temos uma sucessão de estereótipos que montam uma grande piada sobre o ponto ao qual nossa sociedade chegou:
– Os cientistas sérios baseados em fatos, mas ingênuos
– Os cientistas arrogantes, que se rendem aos fatos
– Os políticos e seus puxa-sacos que só pensam em se manter no poder
– Os militares idiotizados
– Os jornalistas empenhados em sinalizar virtude
– O povo, massa de manobra
– O poderoso dono da Big Tech, um louco que é quem realmente detém o poder
O filme é uma vitrine sobre a manipulação, as mentiras, a histeria, a ignorância e a ganância que parecem ser os atributos que regem nossa sociedade.
O cometa está lá, dá pra ver, é só olhar pra cima, mas uma parte quer tirar proveito da catástrofe e, para isso, manipula a verdade. Qualquer semelhança com os grandes temas em discussão na nossa sociedade, não é coincidência.
Infelizmente, esses grandes temas não são tão evidentes quanto um cometa no céu, o que só complica ainda mais a situação. Mas as negociações por poder e dinheiro, essas são bastante reais.
Alguns dados são interessantes: a produção é Hollywoodiana, um dos redatores trabalhou escrevendo discursos para Bernie Sanders, o velho dinossauro da esquerda norte americana, então é possível ver onde as tintas pesam para a direita e para a esquerda, especialmente nas caricaturas dos políticos ou das forças capitalistas que pressionam (mandam) o sistema.
Mas o curioso é que, se você trocar o sinal, funciona igual.
O time de atores é ótimo. Demorei para reconhecer Cate Blanchet, como a jornalista dondoca e superficial interessada em sexo e que junto com o parceiro (Tyles Perry) de apresentação de um programa de variedades/notícias, é avessa à más notícias. Tudo para eles é motivo de piadinhas, de comentários fofos, evidentemente lidos no teleprompter. É o jornalismo transformado em entretenimento e de olho em parecer virtuoso.
Sou suspeito para falar de Leonardo DiCaprio, gosto de tudo que ele faz. Mas adoraria ver Brad Pitt no papel do cientista ingênuo que se submete às artes dos políticos.
Meryl Streep faz uma espécie de clone de Hillary Clinton com Donald Trump. Seu filho é Jonah Hill, que se supera na arte do menino mimado e escroto, provavelmente inspirado nos filhos de algum presidente. E tem a ótima Jennifer Lawrence, que se perdeu nuns filmes aí, mas que está ótima aqui, embora em alguns momentos a narrativa a jogue em situações estranhas. Mas gostei dela, sim. Ron Perlman foi pouco aproveitado como o herói bruto, politicamente incorreto, que seria provavelmente classificado como um fascista, supremacista branco e misógino de extrema direita.
E para coroar, Mark Rylance faz uma mistura de Elon Musk com Steve Jobs, Zuckerberg e Bill Gates que em alguns momentos é assustadora, porque pode ser verdade. Ele manda na presidente dos Estados Unidos, e seu algoritmo é capaz de prever o futuro. A perspectiva de que existam pessoas com o poder que ele tem, é que assusta.
A parte dos efeitos especiais é sensacional. Eu passaria o dia assistindo as decolagens dos foguetes que aparecem ao longo do filme.
O filme tem uma levada de comédia, embora não seja uma comédia escrachada. O mérito está na caricatura que faz de todos os elementos que vemos diariamente nas tevês e mídias sociais, e que conduzem o destino da sociedade. Há um quê de “Rede de Intrigas”, no momento em que Leonardo DiCaprio meio que incorpora Peter Finch na tentativa de acordar a sociedade de seu torpor.
O filme esfrega em nossa cara a hipocrisia da sociedade, a desinformação e a fragilidade de nossos tempos. Traz personagens e situações desconfortáveis, pois sabemos que é assim que acontece. E o filme é divertido porque trata da verdade. A gente ri de nervoso de algumas situações. E o
filme é doído porque trata da verdade. E esfrega na nossa cara o tanto que somos manipulados diariamente por interesses. O que move as pessoas no filme é a luta pelo poder, pela audiência, pelas interações nas mídias sociais (aliás, assista até o final dos créditos, há uma cena impagável que envolve redes sociais).
A pergunta que fica ao final do filme é: será que somos capazes de fazer alguma coisa para salvar a humanidade diante de uma catástrofe que coloque nossa espécie em ameaça? Bem, assim que o filme começou, fiz um exercício de trocar o cometa pelo coronavírus… e fiquei extremamente incomodado com a perspectiva de que temos os meios, a tecnologia, para isso. Mas não temos a grandeza moral para pensar primeiro nas pessoas, depois no poder e no dinheiro.
O filme interpõe a ciência e a verdade ao populismo e oportunismo da classe política. No fim, a ganância, a mesquinharia e a obsessão pelo poder é que definirão nosso futuro. E o filme não alivia sobre nosso destino.
Não olhe para cima é um filme para ser levado a sério. Ele joga na cara da gente uma perspectiva assustadora: a de que o que vemos na tela, é o máximo que conseguimos fazer.
Se for isso, é o fim do mundo.