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Você ‘tem fé’ no Estado democrático de direito?
Gustavo Bertoche - É preciso lançar pontes. -Hoje, num grupo de professores, um velho colega me escreveu que “tem fé” no “Estado democrático de direito” e na “separação dos poderes”. Mas com uma ressalva: ele acredita que “o Estado democrático de direito no Brasil está falido”.
Ele não percebe que “Estado democrático de direito”, “separação de poderes”, “eleições livres”, “liberdade de imprensa” et cetera são expressões abstratas que reduzem a infinita complexidade das disputas políticas a idéias que qualquer adolescente pode compreender. A “fé” em construções mentais que não passam de simplificações pedagógicas é a expressão de uma atitude supersticiosa infantil e ingênua.
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De minha parte, não acredito em “Estado democrático de direito”, “separação de poderes” ou qualquer fantasia política do tipo.
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Concordo com Schumpeter: no modelo de democracia do século XX, os indivíduos comuns são simplesmente consumidores de produtos políticos prontos sob a forma de programas-propaganda pré-embalados e dispostos no mercado eleitoral por elites que se interessam pelo poder de distribuir entre as instituições e as corporações as riquezas econômicas do Estado, mas não se interessam pelo bem-estar povo (a não ser que isso gere mais riqueza a ser distribuída entre eles ou lhes dê mais votos).
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Concordo também com Marcuse, que aprofunda a crítica da democracia que leio em Schumpeter: vivemos numa situação de totalitarismo democrático, porque aceitamos livremente sermos oprimidos e reprimidos. Para Marcuse, a opressão não precisa mais ser exercida por uma figura autoritária: não é mais necessária a presença ou a força de um poder repressor explícito. Na sociedade industrial, basta que o sistema leve as pessoas a acreditarem ser mais livres do que realmente são, que esse sistema provenha as pessoas com bens e confortos suficientes para que elas sejam pacificadas, que as pessoas sejam levadas a se identificar com seus opressores e que o discurso político (que não é a mesma coisa que discurso partidário/eleitoral) seja considerado ineficaz ou seja colocado sob suspeita. Essas medidas conduzem a uma sociedade de homens unidimensionais, que acreditam viver sob uma democracia e agir com liberdade, buscando sua própria felicidade, mas que na verdade contribuem ativamente para um sistema tirânico e totalitário, em que somente se pode escolher entre as alternativas estabelecidas pelo próprio sistema, e em que a felicidade consiste em consumir cada vez mais bens materiais ou culturais criados com o propósito de satisfazer e pacificar os indivíduos.
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O que nos conduz a Foucault, cuja compreensão do poder amplia o entendimento da tese de Marcuse: para Foucault, não interessa saber quem são os indivíduos ou as instituições que “usam o poder” como um instrumento de coerção; o poder não está “na presidência” ou “no governo”, mas sim espalhado e presente no discurso e no conhecimento. Em outras palavras, o poder é difuso e não concentrado; é incorporado e não possuído; é discursivo e não puramente coercitivo; e constitui agentes, em vez de ser exercido por eles. Foucault desafia a ideia de que o poder é conquistado por pessoas ou por grupos por meio de atos de dominação ou coerção. O poder não é uma capacidade nem uma estrutura; ele está em todos os lugares e vem de todos os lugares. Ele é um “regime de verdade” que perpassa a sociedade, e está em constante fluxo e negociação. Isso significa que nós também somos agentes do poder totalitário, pois defendemos, sob o nome de “liberdade democrática”, um sistema que nos limita a escolher, em todos os sentidos, somente o que está institucionalizado.
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Neste sentido, acompanho a posição de Ivan Illich, para quem o Estado e as corporações visam a institucionalizar, sob a justificativa de proteger, toda a existência humana – por meio do ordenamento e da regulação do trabalho, da educação, da saúde, da morte… – para que, assim, possam controlar e escravizar cada um.
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E concordo com Nozick, para quem o Estado de nosso tempo é uma institução cuja principal função não mais é garantir a segurança física e jurídica dos indivíduos e dos grupos, mas escravizar-nos com o propósito de perpetuar a sua própria existência – isto é, a existência das elites políticas e burocráticas que vivem do próprio Estado.
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Aquele meu colega diz que o “Estado democrático de direito” no Brasil “está falido”. Ele não percebe que é justamente o contrário: no Brasil, a democracia funciona perfeitamente.
Porque Raymundo Faoro está certo: a República brasileira desde sempre foi o epifenômeno das disputas sócio-político-econômicas entre famílias e grupos cujas origens estão na própria colonização portuguesa destas terras. Essas famílias e grupos entendem as leis, as instituições e o povo como seu patrimônio; o Estado é, de cima a baixo, composto de modo que perpetue os privilégios dos “donos do poder”.
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Isso significa que os poderes (isto é: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário, a imprensa, o agronegócio latifundiário, a indústria, os banqueiros, as igrejas) não são simplesmente compostos por pessoas corruptas: os poderes são a própria corrupção, e estruturam toda a sociedade corruptamente.
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Por exemplo: não existe um único juiz honesto no Brasil. Não existe simplesmente porque a carreira da magistratura é cheia de expedientes corruptos para que os magistrados possam legalmente obter vantagens escandalosamente imorais e injustas. O magistrado é corrupto ainda que – e justamente porque – jamais tenha infringido uma lei.
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O que nos leva ao ponto central do problema: a própria lei, no “Estado democrático de direito”, é criada para perpetuar os privilégios dos donos do poder, enquanto arrocha os plebeus. O próprio ordenamento jurídico da democracia é, por si, injusto e antidemocrático.
Por isso, qualquer mera reforma na ordem política será simplesmente ineficaz: dentro da lei, o país não tem solução, porque a lei foi criada para garantir o domínio dos donos do poder sobre o povo tornado dócil e mantido ignorante.
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“Ah, mas então você concorda com a pauta bolsonarista do 7 de setembro?”
Eu realmente entendo o sentimento difuso de que não existe, na ordem constituída, nenhum caminho para a justiça: esse sentimento corresponde à percepção da divergência – muito real! – entre os interesses das elites e os do povo.
Todavia, creio que os bolsonaristas estejam equivocados ao acreditar que o seu líder poderia ser o agente catalisador de uma verdadeira revolução. Ora, ele é justamente um agente da perpetuação dos privilégios de uma das elites na disputa política: ele representa o interesse dos militares, que também se consideram donos do poder, e que há 150 anos usam o monopólio das armas como instrumento de exercício político. O que Bolsonoaro deseja não é reformular inteiramente a ordem política nacional: é conquistar território (leia-se: espaço de atuação, privilégios profissionais e rubricas orçamentárias) para o seu grupo no interior das instituições estabelecidas.
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Enfim: “fé no Estado democrático de direito”? “Fé na divisão dos poderes?” “Fé nas instituições republicanas?”
É tudo o que aqueles que se julgam nossos donos, em todos os campos da disputa, querem de nós.